7.10.23

O encanto estrangeiro

 Não é raro rirmos do estrangeiro. Tampouco é raro a troça desandar para o preconceito, como é o caso do português entre os brasileiros. O que, nesse caso, é estranho, pois, veja bem, quando eles chegaram por aqui, havia apenas os indígenas, logo as diferenças evidentes entre ambos os grupos eram tão grandes que, diante dos sustos recíprocos, deve ter sobrado pouco espaço para graça. Tudo bem, a nudez de uns e o excesso de roupas dos outros podem ter se traduzido em dedos apontados para lá e para cá e risinhos de canto de boca. Imagino que o português só tenha virado piada depois de o país ter alcançado uma vida urbana mais intensa, quando os escravizados já eram uma parte substantiva da população.

Galindo, professor, tradutor e escritor, em seu livro “Latim em pó” defende que o “brasileiro”, nosso verdadeiro idioma, nasceu de uma mistura do português de Portugal do século XVI com as demais línguas que por aqui circulavam, em particular as indígenas e as africanas. Ele acaba por concluir que o brasileiro é o pretoguês, reforçando a influência africana no nosso modo de falar. Se é assim, enquanto nossa língua se distanciava do português castiço, o sujeito verdadeiramente brasileiro que se estabelecia passou a ironizar o colonizador. Da ironia à piada e dela ao preconceito é um pulo.

Apesar do perigo em errar a dose, é difícil não rir de um estrangeiro, que, a bem da verdade, nem precisa ser de outro país. Nasci no interior de Minas e em cada uma de minhas mudanças convivi com ironias e gozações. Quando fui para Belo Horizonte, brincavam (estou sendo suave) com meu “erre retroflexo”; ao chegar ao Rio, com meus excessos de “uais” e “nossas” e “virgens marias”. Mesmo hoje, vira e mexe alguém aponta alguma de minhas notas dissonantes ao ouvido carioca. É do jogo.

Fui fazer um curso em Madri e, num fim de semana, eu e um colega chileno conseguimos uma viagem bem barata para Lisboa. Ficamos dois dias por lá, tempo suficiente para conhecer um pouco da cidade, comer uma boa bacalhoada servida por um garçom goiano e ouvir uma apresentação muito triste de fado. E, claro, para enfrentar as diferenças — bem além da língua — entre o português e o brasileiro. Perguntei a um taxista aonde ia o trem que passa sobre o Tejo. Ele me corrigiu: “O comboio?” Concordei. Ele então respondeu à minha pergunta: “Ora, pois, para o outro lado, mas depois regressa”. O chileno, que não falava bulhufas de português, caiu na risada. Isso de compreender sem entender acontece. Na Alemanha, eu sabia exatamente se meus amigos mantinham conversas amenas ou não — e desconfiava de quando caçoavam de mim. Seja como for, e voltando a Portugal, a beira do Tejo era o ponto das baladas. Fui ao banheiro de um dos bares, e todas as piadas que fazemos com os portugueses estavam pintadas (não pichadas ou rabiscadas) nas paredes, com um detalhe: os personagens tacanhos éramos nós, os brasileiros.

Um funcionário do instituto de estatística da Espanha veio fazer uma consultoria na área em que trabalho no IBGE. Um dia o levamos para almoçar num local mais ajeitadinho. Escolhemos um restaurante mineiro, de que, aliás, ele gostou muito, achou a comida parecida com a espanhola. Cerveja aqui, caipirinha ali, ele, mais solto, afirmou que na Espanha a mulher ideal era a dinamarquesa; em Portugal, a polonesa; na Alemanha, a espanhola (posso ter trocado as nacionalidades, mas o espírito era esse). Dito isso, quis saber qual era a mulher ideal para o brasileiro. Um gaiato gritou lá da ponta oposta da mesa: “A do outro”. O espanhol gostou tanto da resposta que passou a contar a história, agora anedota, em seus cursos. Sei disso porque fui aluno dele logo depois. Quando viajei para fazer o curso, levei-lhe de presente uma boa cachaça. A primeira pergunta que me fez foi se poderia colocá-la no congelador, feito uma vodca. Não tinha ideia, mas ele, passado um tempo, me disse que colocou e ficou muito bom.


Obra de Goya



Esse espanhol, Manuel, seu nome, teve disposição para passear comigo por Madri. Fomos ao Museu do Prado, que ele conhecia em detalhes graças à sua mulher, ex-funcionária de lá. Diante de cada obra, meu anfitrião discorria sobre o período em que ela foi criada, a técnica utilizada, dava alguma palavrinha sobre a biografia do artista, em particular de sua relação com o poder, ilustrava, enfim, os Velázques, Rubens, El Greco espalhados pelo salão. Uma hora, no entanto, a voz de Manuel sumiu, deixou de me alcançar: havíamos chegado à parte em que estão as “pinturas negras” de Goya, obra que ele, já velho e, sem sair da Espanha, vivendo uma espécie de exílio, pintou no reboco de sua casa (na Quinta del Sordo). Diante delas, fui perdendo o interesse por tudo fora do meu campo de visão e audição. Um estrangeiro, morto fazia muito tempo, me cobrava uma compreensão do mundo distinta da que eu tinha. Goya parecia me dizer que no mundo, no mundo ideal, não haveria fronteiras. Caminhamos em sentido oposto.

3 comentários:

Unknown disse...

Maravilha!!!!
Vermelho

biapl disse...

Que bela condução, Xandão.
Marejei aqui...🌹

No Osso disse...

Obrigado, Vermelho e Bia. Bom demais ter vocês por aqui.