14.1.23

Grito

 Havia um acúmulo. Desde 2013 – com destaque para a retirada à força de Dilma Rousseff da presidência em 2016 e a eleição de um político de extrema direita em 2018 –, os abençoados de sempre preparavam o bloqueio da estrada que nos levava, aos tropeços, a uma democracia estável. Umas pedras eram jogadas ali, uma ponte destruída acolá. Os últimos quatro anos assistiram à avalanche cuja causa foram as dinamites da incivilidade e não os transtornos das intempéries.

Repito, havia um acúmulo. Mas de quê?

De desesperança. Com isso, tornou-se urgente devolver ao palco aqueles que, a duras penas, conseguiram, no período que vai da posse de Sarney ao governo Dilma (principalmente nos anos de governo do PT), um mínimo de visibilidade e voz política. Falo de negros e mulheres, da comunidade LGBTQIA+, de indígenas, dos trabalhadores, dos desassistidos, enfim, dos marginalizados de sempre, acrescidos, nos últimos quatro anos, de artistas, mesmo aqueles que tinham voz e, na concepção do país regredido à Idade Média, passaram a ser tratados como bandidos.


Foto: AP Photo/Eraldo Peres


A posse do dia primeiro de janeiro foi o grito das vozes, emudecidas, mas não mortas, da democracia. E tudo ali funcionou. Foi uma mulher preta, a catadora de lixo Aline Sousa, quem entregou a faixa ao presidente. Ela subiu a rampa do Palácio na companhia de Lula e de sua companheira, Janja, da cadela Resistência (símbolo do acampamento mantido perto de onde Lula esteve preso em Curitiba), de um cacique (Raoni), de um garoto preto e morador da periferia de São Paulo (Francisco Silva), de um professor (Murilo Jesus), de um metalúrgico (Weslley Rocha), de um artesão (Flavio Pereira), de um jovem que, por conta de uma meningite, sofreu, quando tinha três anos, uma paralisia cerebral (Ivan Baron) e de uma cozinheira (Jucimara Fausto). A voz das vozes silenciadas se fez ouvir. Todos eles (e outros tantos) seriam enumerados e chamados ao palco – “vocês existem e são valiosos para nós” – na posse do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, ele mesmo um negro.

Basta demonstrar apreço à democracia e dar visibilidade aos carentes para garantir um bom governo? Não. É preciso melhorar a vida da população, que, no caso do Brasil, é heterogênea, indo dos trinta milhões de famintos àquela pequena porção de ricos que, sozinhos, têm uma renda superior à dos 90% restantes. É possível agradar a todos? Não. Eu espero que os avanços se deem no sentido de proporcionar as mínimas condições de vida aos mais pobres. Isso exige ações na economia e nas outras áreas e requer precisão e boa vontade dos executores das políticas.

Uma semana depois da posse festiva, que espalhou esperança aos que apostam num país diverso, inclusivo, pacífico – embora com embate de visões de mundo –, uma horda de fascistas, uns poucos crédulos, outros obedecendo a ordens (ainda a descobrir ou confirmar de quem), destruiu o patrimônio público. Não qualquer patrimônio, miraram aquele que a ideia de uma nação moderna construiu, as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário desenhadas por Niemeyer. Além dos prédios, danificaram importantes obras de artes, o que, vindo de quem veio, a extrema direita, não é de se estranhar.

Enfim, vimos um nudes do Brasil cindido, esse país que não resolveu grande parte de seus problemas estruturais (racismo, privilégios de toda sorte, poder excessivo na mão dos militares, concentração pornográfica de renda etc.). Neste momento, chegamos ao ponto no qual ou cuidamos desse débito histórico ou o ataque à democracia se transformará em guerra. Dela sairá um país pior, certamente nas mãos de um autoritário.

Devo confessar, no entanto, que, ao ver a posse das ministras dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e da Igualdade Racial, Anielle Franco, um balanço desses dias me leva ao otimismo.

7 comentários:

Caio disse...

Acho que um documentário que abranja os dois episódios, a posse e a horda dos possessos, contrapondo cosmos e caos, euforia e baderna, ganharia qualquer premiação cinematográfica e marcaria um insólito acontecimento histórico.

Rodrigo Leste disse...

Parabéns pela análise, Xandão. O detalhe é que esse filme é longo como uma novela mexicana, assim você poderá escrever muitos novos capítulos. Material é que não vai faltar.

Aroeira disse...

muito bom.

Estação das Letras disse...

Muito bonita como sempre sua crônica..
Havia um acúmulo mesmo.. !
Que os céus nos ajudem a retomar esse país para a alegria do discernimento!
Obrigada, Alexandre!

Afonso Guerra-Baião disse...

Parabéns pelo texto, lúcido e necessário!

Nilma Lacerda disse...

Cronista imprescindível, esse Alexandre Brandão.
Obrigada, rapaz, e estejamos alertas, olhares e ações voltados para todos os lados.

No Osso disse...

Obrigado a todos pelas leituras e palavras. Continuo agarrado ao otimismo.