13.8.22

Joaquim

Hoje é Dia dos Pais, e eu, cronista que foge das efemérides como o diabo se regozija com o fogo, lembro-me do meu e dele conto, com afeto, algumas historietas.

Quando saiu “A palavra em construção”, primeiro livro no qual aparecem alguns continhos meus, mandei um exemplar para meus pais. Ao encontrá-los, perguntei ao velho se havia gostado. Sua resposta foi não, que parou a leitura na primeira frase. Ele se referia a “Encontro na madrugada sem lua”, que começa assim: “Meu pai morreu”. Tenho várias maneiras de entender a resposta, mas, tocado pelo humor que ele nutria, escolho a da graça. O fato é que não posso afirmar se leu ou não. Se gostou ou não.

Joaquim viajava o Brasil vendendo tourinhos e novilhas. Na juventude, em um país ainda ruralíssimo, no lombo de cavalo, em comitivas cheias de histórias. Mais tarde, enfiando a boiada num caminhão e indo logo ali, ó, no Pará, ou bem aqui, no interior do Rio de Janeiro. Em Santo Antônio de Pádua, deram-lhe o título de cidadão honorário em reconhecimento ao que fizera pela pecuária local. Se hospedava no hotel do Bidinho, que lhe reservava o mesmo quarto, de onde se ouvia o barulho do rio. Só ficava ali, comentou comigo, para ouvir aquela música.

Nesse hotel, no fim da tarde, juntavam-se os fazendeiros que iam fechar um negócio e amigos que Joaquim fez na cidade, como o inseparável Edmundo do Banco do Brasil. Um juiz de direito aposentado, morador do hotel, era presença certa. Ele, iracundo, e meu pai, moleque que só, não se entendiam. Joaquim gastava noites e noites amolando o senhor. Certa época, inventaram que meu velho tinha um caso com a única fazendeira do grupo, e o juiz, que conhecia minha mãe, não se conformou e passou a soltar os cachorros pra cima daquele “vendedor de boiada de uma figa”. A noite passava, os homens e a única mulher (ou as duas, quando minha mãe estava lá) se divertiam. O mal-humorado, em permanente revolta, ainda que ameaçasse meu pai, o devasso, com violência ou delação, nunca cumpriu a promessa nem faltou às reuniões nem as abandonou nos momentos de maior exaltação. O fato de estar sempre ali é sinal de que se divertia tanto quanto os demais. Aliás, fora daquele momento, ele e meu pai eram pura delicadeza um com o outro. Às vezes, tomavam café juntos e elogiavam a coalhada preparada na cozinha do hotel.

Eu e meu pai não tivemos grandes diálogos, não lhe pedi conselho nem ele achou por bem me dar algum. De todo jeito, alimentávamos cumplicidades. Com quatorze anos, eu dirigia pelas rodovias, enquanto ele, no banco do carona, dormia pesado. Pai, se nos param? Não tem problema, filho, eu também não tenho carteira de motorista.

O velho leu poucos poemas em sua vida, mas, à medida que o tempo passa, eu o decifro poeta. Fazia contas de cabeça de forma impressionante, porém nunca soube ganhar dinheiro. Apesar de ser uma autoridade na arte de reconhecer de longe a potencialidade de uma bezerra ou de um garrote, não cobrava pela ajuda prestada a compradores inseguros ou novatos. Apartava animais como se distribuísse palavras em um soneto, ora buscando a rima, ora preocupado apenas em encaixar tudo num quatro, quatro, três, três.

Ah, se o velho se soubesse poeta!

Ah, se eu houvesse percebido a tempo! 

(Ele me chamava de Xandão, e eu o chamava de Joaquim, intimidade de amigos.)



Joaquim, o neto mais velho, Marcelo, e eu.


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