5.12.20

Circense (publicado em Contos de homem, livro de 1995)

A Egberto Gismonti

 

O lápis traça a maquiagem no rosto do palhaço. A ponta arranha a carne por dentro. Já não há nenhum prazer em representar, em enfrentar a ansiedade das crianças, em proporcionar-lhes o riso. Mas ele terá de fazê-lo, mais uma vez e outras tantas. Para um homem de quarenta anos, recomeçar é um verbo inconjugável, é derrota.

Olha-se no espelho, tudo perfeito. Abre o armário, veste a peça que falta, a alegria que irradiará para a plateia. Trago seco.

A entrada em cena é triunfal. Cumprimenta a criançada, dirige-se para o centro, abre os braços e inesperadamente dá um salto mortal. Seus pés tocam o chão, mas tropeçam. O corpo rola como um aro, batendo nas laterais do círculo. Ao erguer-se, suas calças caem e, ao apanhá-las, deixa escapulir um peido alto. Finge envergonhado, senta-se; levanta-se surpreso com as fezes coloridas, de plástico.

Outro salto leva--o para outro canto do circo e assim sucessivamente, até que todos o tenham visto mais de perto, até que todos, como cúmplices, tenham testemunhado seus blefes, que desencadeiam risos compulsivos. As tábuas da arquibancada zunem.

No próximo pulo, o imprevisto. Ao rolar pelo chão, o palhaço mete o rosto na bosta do elefante. As palmas e as gargalhadas atingem níveis estrondosos, quase silenciam e retornam a toda, num vaivém interminável.

Para quem tem a carne talhada por dentro, o golpe fere as células, deixa o desejo exangue.

 

Émerson sente que seu riso mexe com os órgãos, incha o fígado, comprime o pulmão. Escorrem lágrimas em sua face. O palhaço havia planejado o melhor dos truques: insinuar que o chocolate na cara era bosta de elefante, que o cheiro do doce era o podre fedor da merda.

O rapaz sai do circo repleto. Naquelas duas horas, não pensou no mundo lá fora. Mas, em pouco tempo, está às voltas com uma rua que tem de ser atravessada, com a falta de grana para comprar um refrigerante. O desconforto da arquibancada era agora dor nas costas.

Um movimento brusco, como se pedisse de volta os minutos vividos sob a lona. Abraça-se a um poste, fecha os olhos e sonha com o mundo do circo. Fugirá na companhia para atuar como trapezista, contorcionista, macaco, leão, qualquer coisa.

E é assim, vivendo tudo isso, que Émerson tropeça na calçada e cai, metendo o rosto na bosta de um cachorro.

0 mesmo riso da lona explode ao lado de Émerson. São as crianças vindas do circo, vendo na cena de rua a repetição da trapaça do palhaço. Mas ele sabe que não há truque, nem o gosto nem o cheiro daquela merda se parecem em nada com o chocolate. Levanta-se, xingando todos os que o olham, fazendo os piores gestos possíveis. Vai-se arrastando para casa, para o quarto, para as roupas, para a mala. Para o circo.

 

Os trailers formam o círculo. Os animais nas jaulas cuidam de empestar o ar. As crianças correm por entre as tendas metálicas. A bailarina esfrega suas roupas e lava outras para o mágico. O trapezista sai para procurar mulher.

Alonso cerrou as cortinas. Tira a roupa de palhaço e toma a primeira talagada de cachaça. Em breve, a segunda, a terceira, e outras tantas. Em breve, o nariz de bola de pingue--pongue é amassado pelas suas mãos; o lápis da maquiagem (faca?), quebrado; as roupas, rasgadas.

 

O passo de Émerson é determinado. A bolsa, com suas roupas, é pequena e cinza. Sua vontade brada. Fecha a mão e toca a porta.

 

 Afonso ouve a batida e não sabe se o barulho é luz ou tiro de bala--morte.

Trocam olhares e dizem muito. Entram. Trancam a porta. Lá estão.

 

O próximo espetáculo é amanhã. Ou nunca.


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Certamente foi ouvindo Palhaço, do disco Circense, que escrevi o conto. Se quiser ouvi-la, clique aqui.

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