A
Egberto Gismonti
O lápis traça a
maquiagem no rosto do palhaço. A ponta arranha a carne por dentro. Já não há
nenhum prazer em representar, em enfrentar a ansiedade das crianças, em
proporcionar-lhes o riso. Mas ele terá de fazê-lo, mais uma vez e outras
tantas. Para um homem de quarenta anos, recomeçar é um verbo inconjugável, é
derrota.
Olha-se no
espelho, tudo perfeito. Abre o armário, veste a peça que falta, a alegria que
irradiará para a plateia. Trago seco.
A entrada em
cena é triunfal. Cumprimenta a criançada, dirige-se para o centro, abre os
braços e inesperadamente dá um salto mortal. Seus pés tocam o chão, mas
tropeçam. O corpo rola como um aro, batendo nas laterais do círculo. Ao
erguer-se, suas calças caem e, ao apanhá-las, deixa escapulir um peido alto.
Finge envergonhado, senta-se; levanta-se surpreso com as fezes coloridas, de
plástico.
Outro salto
leva--o para outro canto do circo e assim sucessivamente, até que todos o
tenham visto mais de perto, até que todos, como cúmplices, tenham testemunhado
seus blefes, que desencadeiam risos compulsivos. As tábuas da arquibancada
zunem.
No próximo
pulo, o imprevisto. Ao rolar pelo chão, o palhaço mete o rosto na bosta do elefante.
As palmas e as gargalhadas atingem níveis estrondosos, quase silenciam e
retornam a toda, num vaivém interminável.
Para quem tem a
carne talhada por dentro, o golpe fere as células, deixa o desejo exangue.
Émerson sente
que seu riso mexe com os órgãos, incha o fígado, comprime o pulmão. Escorrem
lágrimas em sua face. O palhaço havia planejado o melhor dos truques: insinuar
que o chocolate na cara era bosta de elefante, que o cheiro do doce era o podre
fedor da merda.
O rapaz sai do
circo repleto. Naquelas duas horas, não pensou no mundo lá fora. Mas, em pouco tempo,
está às voltas com uma rua que tem de ser atravessada, com a falta de grana
para comprar um refrigerante. O desconforto da arquibancada era agora dor nas
costas.
Um movimento
brusco, como se pedisse de volta os minutos vividos sob a lona. Abraça-se a um poste,
fecha os olhos e sonha com o mundo do circo. Fugirá na companhia para atuar
como trapezista, contorcionista, macaco, leão, qualquer coisa.
E é assim,
vivendo tudo isso, que Émerson tropeça na calçada e cai, metendo o rosto na
bosta de um cachorro.
0 mesmo riso da
lona explode ao lado de Émerson. São as crianças vindas do circo, vendo na cena
de rua a repetição da trapaça do palhaço. Mas ele sabe que não há truque, nem o
gosto nem o cheiro daquela merda se parecem em nada com o chocolate. Levanta-se,
xingando todos os que o olham, fazendo os piores gestos possíveis. Vai-se
arrastando para casa, para o quarto, para as roupas, para a mala. Para o circo.
Os trailers
formam o círculo. Os animais nas jaulas cuidam de empestar o ar. As crianças correm
por entre as tendas metálicas. A bailarina esfrega suas roupas e lava outras
para o mágico. O trapezista sai para procurar mulher.
Alonso cerrou
as cortinas. Tira a roupa de palhaço e toma a primeira talagada de cachaça. Em breve,
a segunda, a terceira, e outras tantas. Em breve, o nariz de bola de
pingue--pongue é amassado pelas suas mãos; o lápis da maquiagem (faca?), quebrado;
as roupas, rasgadas.
O passo de
Émerson é determinado. A bolsa, com suas roupas, é pequena e cinza. Sua vontade
brada. Fecha a mão e toca a porta.
Afonso ouve a batida e não sabe se o barulho é
luz ou tiro de bala--morte.
Trocam olhares
e dizem muito. Entram. Trancam a porta. Lá estão.
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