6.12.20

Traços (publicado em Contos de homem, livro de 1995)

 Às vezes sai perdida pela cidade. Procura uma apuirana de onde possa sugar toda a estricnina. Noutras, tranca-se em casa, esperando ser capturada e salva por algo, alguém, pai, mãe, o além.

Resistiu a tudo. Até a um amor.

. . . o amor foi como uma rosa nascendo no concreto: belo, mas inútil.

Não é bonita. Um metro e sessenta, cinquenta e quatro quilos, mãos compridas, unhas grandes de fundo rosado, sobrancelhas finas e cílios espessos. Pés magros de veias salientes, a tez muito branca. Os pelos crespos, vermelhos e abundantes. Nádegas pequenas.

Tampouco é feia. Olho preto de jabuticaba, nariz torneado, boca tímida, carmim. Dentes sempre brancos, sem nicotina. Cabelos muito longos.

Ano passado recebeu um assobio na rua. Chorou. Estoica por fora, não se sabia como por dentro. Que tinha células sabia. Também, que tinha os aparelhos digestivo e reprodutivo. Rins, pulmão. Mas e que mais?

No dia em que acordou com o sexo umedecido e as mãos nele, atirou-se violentamente contra a parede, pousou o ferro quente pelo corpo. Sorriu por se sentir tão bem.

Quebrou os espelhos da casa porque achava que a imagem refletida não era a sua. Era triste assim? Aquelas olheiras dilaceravam mesmo o seu rosto? E as espinhas? Espelho algum dia foi feito para mostrar a dor?

Foi morar dentro do guarda-roupa, fitando a lembrança do espelho. Aí recordou o dia. O pai morto, a mãe chorando, e ela querendo que ele acordasse.

Ela é a Maria José do José e da Maria. A síntese. Não é a princesa que o pai inventaria. Não é a mulher que a mãe desejou.

Quando vai ao bar, diz ao garçom que espera nove amigos. Os outros são meras possibilidades de amizade. Sai antes de a bebida chegar.

Em um domingo de missa, ganhou um beijo. Ainda hoje sabe de cor seu gosto e, quando quer, sente.

Já deu um beijo. No vento.

Conhecia Cecília Meireles. Pegava o telefone, discava um número qualquer e recitava: "Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo". Como ninguém a ouvia até o final, deixou de conhecer a poeta.

O banho quente a tranquiliza. Dentro d’água, mesmo fria, sorri sem culpa ou medo. Batizou essa sensação de amor. 

Agora ela está lá, no alto da ponte, namorando o mar.


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