19.2.21

Movimentos (publicado em Contos de homem, de 1995)

Número Um

Mandararn? Eu fui. Está aqui a agulha perdida no palheiro.

 

Número Dois

Ir até lá. Eu queria, e pronto. Juntei as forças, abri as portas. Não brindei despedidas ou apertei mãos, prometendo espaço dentro de mim.

A estrada era um rascunho de deserto. Mas não sofri o sol nem tive sede. Deixei a poeira levantar-se e não virei o rosto para ter certeza de que ficava para trás o que ficava para trás.

Nenhum problema maior. Um ou outro carro na contramão, uma friagem na madrugada. E só. Cheguei.

Encontrei aquilo que eu queria. Comprei o que pude; o resto roubei. Montei meu reino. Construí os castelos, os porões, as estrebarias para os corcéis de guerra, raptei a virgem. Tudo pronto. Ordenei que descessem a ponte. E, estranho, tive medo de entrar.

 

Número Três

Na comunhão do pó, forjo alegria. A lâmina risca os trilhos, o corpo recebe a dádiva. Eu danço, ele dança, nós dançamos. Um carnaval simulado. O sorriso nos lábios é anúncio de pasta de dente. O aperto de mão, negócio fechado. Tenho o controle do leme, mas a sensação de que no barco sou caroneiro.

Amanhã, o último confete estará colado ao peito, ainda. Uma dor incorruptível. Não me devolverão sequer um níquel. Abro janelas, cadê luz? Remexo minhas gavetas, e é um lenço de Soraia, um cinto de Solange. Mas elas, elas mesmas, não estão aqui. Carregaram a lembrança do meu peso, regaram-se com meu jorro, na melhor das hipóteses.

Com que pernas vim dar nesse porto? Eu era moço, viril, e isto bastava. Mas se futuco mais, esgarçando o tecido do colchão, riscando a tinta da parede, abro caminhos. Sigo pelas frestas e molas, nos vazios possíveis. Pronto, tenho ao alcance das mãos. Pego. Aperto. Ai!

Uma minhoca veio viver na minha cabeça. Depois, uma outra, e outra, e outra. Na louça dos meus dentes, cáries. Nas pessoas de ouro, carne. Meus sonhos, imagens desfocadas na lente que é puro mofo.

 

Número quatro

Não restaram nem os ratos; estou só. Parece, assim mesmo, que é o início da festa. A madeira do chão range, pisoteada por passos que já fugiram de mim. No tanque, a roupa úmida cria bolores, meu retrato com cheiro. O som da gota que cai ininterruptamente convida para mais uma dança. Aceito. Apago as luzes, e me solto. Vou-me desfazendo, novelo. Meus fios não viram nada, casaco, colete ou luvas. A última convidada me recolhe, com vassoura e pá. Lança-me no Azul.

 

Número Cinco

Eu chovo.

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