13.2.23

Uma crônica pungente

 

A crônica, vocês sabem, fala de tudo e mais um pouco. E, quando lhe falta assunto, fala da falta de assunto, numa espécie de terapia a céu aberto. Os assuntos tratados por ela, desde Machado de Assis até meus colegas da Rubem, não têm limite, podendo ser uma reflexão sobre o guarda-chuva, como a de Cássio Zanatta neste ou noutro espaço, não estou certo. Ou um acerto de contas com a memória sobre as tormentas, como fez aqui mesmo e recentemente o Rubem Penz, aliás, em crônica que poderia ser lida como complementar à de Zanatta. Enfim, o cronista escreve sobre o pó da rua ou o do universo. Ou sobre a lama de qualquer galáxia.

Minha memória (vacilante) e meus conhecimentos (parcos) não resgatam, entretanto, nenhuma cujo assunto seja o pum. Peço desculpas aos mais sensíveis –aconselho-os a abandonar a leitura, não lhes fará falta (a crônica, sejamos sinceros, não faz falta a ninguém, mas felizes são os que têm esse textinho mixuruca entre seus principais esteios) –, mas vou escrever sobre o pum.

Nos primeiros cuidados com o bebê começa a estigmatização dessa autêntica e necessária manifestação do bom funcionamento do corpo. “Que pum foi esse, neném?” Daí a pouco, a própria criança passa a rir quando lhe sai o barulho trovejante, de origem desconhecida. Não é raro ver a criaturinha olhar pelos quatro cantos à procura do bicho carrancudo que berra ou zurra ou grasna ou muge daquele jeito. Como tudo se aprende, já nos primeiros anos de escola, o pum passa a ser uma grande porta de socialização. Os “punzeiros” tornam-se populares. Conheço um, hoje avô de família, que sonorizava o hino nacional. Enfim, é mais ou menos nessa época que começam a surgir teorias – que se diga: puro senso comum, sem pesquisa comprobatória. Se é barulhento – portanto, de origem evidente –, não fede e é cômico. Se é silencioso – de evidência questionável (“não fui eu”) –, é puro cheiro e trágico. Na vida adulta, chegam os casamentos e, nessa matéria, um cotidiano de combate e aceite.

A questão é que o pum, coisa tão comum, insisto, passa a ser visto como antissocial, embora, ao que parece, não seja assim em todas as culturas. Na Índia, ouvi dizer, os baixos ventos soariam livres em qualquer ambiente. Me lembro daquela piada de uma família italiana (ah, como são preconceituosas as piadas!) que se encontra num domingo de macarronada na casa em que vive o avô com seus noventa anos e meio tantã. Apesar da decadência, é o patriarca e se senta à cabeceira e, como todo velho e relho, fica alheio à conversa interminável entre os comensais. De vez em quando, ele fica meio de lado. Alguém corre para colocá-lo na posição correta com medo de que ele esteja se desequilibrando. Depois de ser “socorrido” duas ou três vezes, o nono não aguenta e reclama: “mas eu não posso nem ...?” O nonagenário não usa a palavra infantil que tenho usado, preferindo aquela catalogada como palavrão. Bobagem, não existem palavrões, mas, por uma questão pessoal, prefiro ocultá-la dessa crônica que não é daquelas das quais se possa dizer que não fedem nem cheiram.

Recentemente estive em algumas rodas de septuagenários e ouvi a confissão de que, naquela idade, perde-se o controle sobre o pum. As pessoas se sentem constrangidas, afinal é uma vida inteira de repressão e a prova concreta de que, ao envelhecer, não se é mais dono do próprio corpo. Ao mesmo tempo, é uma alegria. É o soltar a franga, o sair do armário de uma de nossas mais básicas funções, talvez a mais reprimida. Aqueles meninos porto-riquenhos, ao cantarem “não se reprima, não se reprima”, bem podiam estar mirando a turma da terceira idade e não a que se despedia da primeira.

A crônica, quando não tem do que falar, do não ter do que falar ela se apossa, repito. Algumas, no entanto, exageram. É o caso desta, que termina aqui para não perder o pouco da graça que tencionou ter.

Um comentário:

Branca Maria de Paula disse...

Xande, sua crônica é de fato pungente e me fez lembrar do grande amigo Ronaldo Simões,grande e saudoso amigo, que escreveu um livro para pequenos leitores chamado exatamente assim: PUM!

Observei que sua crônica tem várias incursões poéticas! Vou te mandar a capa do PUM via e-mail pois não sei anexar aqui.
Adelante!