Quando o mar não está para peixe, é hora de olhar para os lados. Para quem estarão as montanhas? Os lagos estarão para peixes? E os peixes, eles mesmos, independentemente de mares e lagos, estarão para nós?
Neste exato instante, olho para os lados, mil vezes olho para os lados. Vejo. Vejo com o espanto dos inocentes. Vejo, e ver me cega.
As marcas do crime hediondo vieram parar em minhas mãos, justo nelas que até então não passavam da ferramenta com que pude (e posso) carregar as pedras do cotidiano, as mesmas que fizeram Drummond insistir: “E agora, José?”.
O sangue coagulado entranhou-se na minha pele e virou um fio avermelhado, que se confunde com uma marca sem importância, um estresse qualquer devido a algum esbarrão. Mas, não se iludam, é o sangue da vítima. Como saiu dela e chegou aqui, ela morta lá longe, num lugar em que nunca estive?
Não bastasse esse risco rubro, salta de minhas mãos o cheiro envinagrado da matéria velha. Ontem, vida; hoje, deslocada no tempo e no espaço, é o biscoito proustiano a despertar com teimosia a lembrança do crime que não cometi, mas que é meu. Sou culpado!
Não há como apartar-me de minhas mãos, dizer elas em oposição a mim. Formamos uma unidade incorruptível, logo tomo-me de certo orgulho; sim, orgulho: cometi o crime perfeito. Não deixei nada de meu na cena do crime e, ainda por cima, trouxe de lá as digitais da vítima.
O que posso fazer com essas pegadas cravadas em mim? Tentar apagá-las, recorrendo à soda cáustica, ao esfregão, à amputação simples e pura? Cultivá-las como flor, dando-lhes amiúde água e esterco? O que estou dizendo? O ferrão não me marcou com rosa ou crisântemo, mas com os músculos abortados, com os sorrisos calados, com a esperança pujante destituída de seus pés.
Já não me orgulho de nada, nunca me orgulhei. Os sentimentos são mestres em nos confundir. Estive e estou confuso. O crime que cometi é o mais perfeito de todos, apesar de não tê-lo feito, apesar de não querê-lo. E o assassino só se satisfaz quando se vê revelado a todos. Eu não serei, jamais serei, pois não arrastei ninguém pelas ruas da cidade, não estrangulei nem atirei menina alguma de um sexto andar qualquer. No entanto fiquei com os momentos de remorso do criminoso. Se tenho culpa, sou eu a besta.
Não serei punido pela lei dos homens. Se estender minhas mãos ao policial, ao promotor, ao juiz, eles dirão: limpas, assaz limpas. Se insistir para que sejam cheiradas, encontrarão ali, na placidez da pele, o agradável aroma dos sabonetes anunciados entre os capítulos da novela das oito.
O mar não está para peixe. O peixe não está para o mar. A montanha não está para a neve. A neve não está para a montanha. Os homens? Não, não rirei dos homens como se não fosse um deles. Sou um tão bom ou tão ruim como outro qualquer. Não posso bisar o que por aí se diz: “Foi um desesperançado que não tem nada a perder”. Ou: “Foram uns desajustados que perderam o controle da situação”. Não posso, pois somos todos farinha do mesmo saco. Tanto quanto eles, eu matei. Estão aqui, nem tão escondidas assim, embora não de todo visíveis, as marcas do crime que cometi. Que cometemos. Sinto dizer-lhe, você também o cometeu.
2 comentários:
Presumo entender, melhor, experienciar, o sentimento de corpo e de implicaçao na doença social de que se fala.
Só que vc é foda.
O bom é que se por um lado somos nardoni, por outro, somos Xandão.
carinho,
Dani.
Prezado Xandão,
As vezes me pergunto o que fazes fora do meio literário! Essa crônica reflete um pouco o mar em que estamos vivendo, que definitivamente não está pra peixe nem pra nehum outro bicho, e nos joga violentamente de encontro à realidade!!
Beijão
Paxá
Paxá e Dani,
A idéia é essa mesmo, chamar a atenção para o que há de social nesses descalabros todos. As patologias isoladas, íntimas, quando começam a pipocar mais e mais, é claro sinal de que há uma patologia maior, nossa.
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