O ano está
acabando, momento ideal para arrumar a sala, retirar os livros e discos nela
esquecidos e extirpar o pó das coisas. Nada de requintes, uma faxina de bom
tamanho deve ficar no limite do que minhas mãos e uma flanela trabalhando
juntas forem capazes de fazer.
Começo por levantar,
largado na mesinha de canto, o “Modern Time” (2006, Sony), de Bob Dylan. Confesso que passei a curtir esse mito a
partir desse disco. Dele deslizei para os outros, os antigos e clássicos.
Aprende-se com “Modern time” e, de resto, com toda a obra de Mr. Zimmerman uma
coisa importante: o terreno da simplicidade é fértil. Dylan e seu grupo,
econômicos no número de instrumentos, criam uma imensidade de climas, de sons,
de barulhinhos bons que gente leiga como eu nem acredita que se pode fazer
tanto com tão pouco.
Ao lado de Dylan, o
livro de Marco Túlio Costa, “Mágica para cegos — contos e contracontos” (2011, Editora Saraiva). Marco Túlio ficou
conhecido por seus textos para jovens, um dos quais, “Fábulas do amor distante”
(2003, Record), ganhou o Jabuti.
Todavia, ele escreve para todas as idades, prova disso é esse “Mágica”, um
achado. Escrevendo um conto de uma determinada perspectiva para depois
escrevê-lo de outra, o autor mineiro, além de contar boas histórias, traz à luz
o próprio ofício de escritor. Como Dylan, sem ultrapassar as fronteiras da
simplicidade.
Tiro o pó da pedra
de mármore. E, ao enfrentar a sujeira que desce até os pés da mesinha, deparo
com uma peça que me é cara: um papel amarfanhado, no qual registrei o seguinte
verso: “Dize-me tu, montanha dura,/onde nenhum rebanho pasce,/de que lado na
terra escura/brilha o nácar de sua face.” A letra está péssima, mas o poema de
Cecília Meireles, “Serenata” (Retrato Natural, Obra poética, Nova Aguiar), não para: “Dize-me tu,
palmeira fina,/onde nenhum pássaro canta,/em que caverna submarina/seu silêncio
em corais descansa.” E assim termina: “Dize-me tu, ó ceu deserto,/dize-me tu se
é muito tarde,/se a vida é longe e a dor é perto/ e tudo é feito de acabar-se!”
Que homem eu era quando transcrevi o poema? E que outro então quando amassei o
papel? E ainda o que o deixou ali, largado a moscas analfabetas?
Jogado ao chão, passo
os olhos pela extensão da sala. Vi um resto do garoto que fui... Não, minto;
desejei vê-lo. É tarde, dialogo com Cecília. Em seguida, ouço, sem que Nelson
Ned cante: “E tudo passa, tudo passará”. Já passou.
Ao lado do
telefone, a receita de meu médico, seu conselho para que eu abandone os doces,
não bastasse ter deixado o álcool, e a sugestão de fazer um exame que custa o
olho da cara. Tudo em nome de um fígado supimpa, apesar dos pesares. Uso a
receita como leque, enxugo o suor com o dorso da mão. Gestos, pequenos gestos,
os quais, cogito, dão uma espécie de chupeta na memória — essa maldita que não
me ajuda, que só me mostra nacos retalhados —, fazendo com que ela, empurrada
ladeira abaixo para pegar no tranco, me imponha um sobre-esforço para lembrar a
“cena” de “Luz em agosto” (William Faulkner, Cosacnaify) na qual Lena se coloca na estrada à procura de Lucas Burch,
o homem que a deixara prenhe. Cena inesquecível, lindamente escrita e traduzida
(Celso Mauro Paciornik), mas da qual não recordo — ou da qual não recordo além
do ponto aqui e agora registrado —, vítima que sou desse jogo de gato e rato em
que estamos eu e meus miolos moles.
Ainda fora do lugar, o DVD do Arnaldo Baptista (“Lóki”, Paulo Henrique
Fontenelle, MZA), o que fez o durão aqui
ir às lágrimas. Não só pelo drama do roqueiro, mas pelo drama de todos nós,
seus contemporâneos, que também temos passado por poucas e boas. Dia desses, um
chegado levantou a seguinte estatística: ele e seus amigos de adolescência formavam
um grupo de cinquenta e sete pessoas; hoje, quando beiram os cinquenta anos,
estão reduzidos a seis. Foram caindo pela estrada afora, por onde deveriam ter
ido bem contentes levar doces para a vovozinha. Foram sofrendo overdoses, contaminando-se
com vírus letais, envolvendo-se em acidentes. Suicídio
ao pé da letra, aparentemente nenhum. Arnaldo está vivo.
Parece melhor não
cair nessa de virar o ano com tudo organizado e limpo, pois a limpeza externa
tem contrapartida na (minha) sujeira interna e íntima. Abandono a arrumação.
Distraído, levanto o caderno de telefone e topo com uma barata. Ela se espreguiça
e, de pronto, começa a crescer... E a crescer mais ainda... E ainda mais... Até
que dela brota Kafka, que, um tanto quanto assustado, me pergunta: "Onde
estou?"
No
meio do meu caos de cada dia, Kafka. Bem no meio.
15 comentários:
amigo, nem conheço alguns personagens mencionados, mas é fácil deixar-se levar pelo desenrolar do texto.Muito bom! beijinhos
Gostei das memórias, principalmente quando fala do Faulkner, eu deliro. Realmente a cena é linda, como tudo o que ele escreve. E "Palmeiras selvagens", já leste? Nunca sei qual o melhor, leio e releio sempre. Minha alma agradece.
Adorei, Xandão.
"Que homem eu era quando transcrevi o poema? E que outro então quando amassei o papel? E ainda o que o deixou ali, largado a moscas analfabetas?" Talvez só haja uma coisa mais linda que as palavras: os sentimentos humanos. Ainda bem que, na crônica, as duas coisas se casam.
Tia Beth, Mônica e Edson, obrigado pela visita. Vocês sabem, em casa de desmemoriado, limpeza se faz com a flanela da poesia. Pelo menos, assim eu faço.
Abraços.
Obrigada, Alexandre, pelo presente do texto. Memórias lindamente costuradas por seu olhar poético.
Bjs,
Carmen Moreno
Alexandre, você sempre me surpreende.Dia desses li uns versos que soam bem como este seu questionamento sobre quem era aquele homem :
"Não sei bem onde foi que me perdi.
Talvez nem tenha me perdido mesmo,
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo.
Belo discurso. Também me encontrei(ou me desencontrei?) no seu texto. Esse Kafka não larga o pé da gente! Beijos.
Lena
Comentário de Maria Balé, que publico a pedido dela.
Que belo 'canto de mim mesmo', a la Walt Whitman, Alexandre!
Carmen, Marquim, Marilena e Maria, fico feliz com a visita de vocês, com os comentários e tudo. Mas tem uma coisa: fico com vontade de sentar e conversar fiado, assim, um dia inteiro, dois, sabe cumé?
Beijos.
Miliamigo!!!!!!!!!!!!!!
Parabéns!!! Estou com un nó na garganta!!! Que nesse ano novo, você continue brilhatemente talentoso!!! Que DEUS continue te abençoando!!!
Miliabraços do Miliamigo:
Centtanto.
Centtanto, desfaz esse nó na garganta com uns tragos de leve. E passe sempre por aqui, pois às vezes caímos na risada, aí dá nó nas tripas.
Abraços.
Duas palavras de algumas outras:
1) Queria que todo o lixo que achasse aqui em casa viesse carregado de toda essa riqueza que você faxinou.
2) Você já ouviu falar em prosa poética? Eu acabo de lê-la.
Dag, Dag, olho que eu acredito em tudo que você fala!
Obrigado, querida, volte sempre.
Gostei muito, Alexandre! Bj
Lucia, gostei muito de você ter gostado.
Beijos.
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