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Preciso escrever uma crônica sem medidas.
Gorda e linda. Um pouco excessiva, por isso mesmo enxuta, e que dê conta de
tudo, do que está sobre a água e do que soçobrou milênios de anos atrás. Apesar
dessa ingerência no tempo, que ela não dê conta da passagem das horas e de seus
desdobramentos. Nem nostálgica nem pretensiosa, mal conectada à sombra do
futuro. Uma crônica — como de fato deve ser — de hoje para hoje. Imensa e
miúda.
Preciso escrever uma crônica que nem
acorde nem adormeça ninguém, mas que, ao acordado, leve uma réstia de descanso
e, ao adormecido, uma côdea de consciência. Uma crônica claudicante nas suas
certezas e muito determinada em seus desvãos. Crônica para o amigo na UTI e
para a filha da amiga que prepara o casamento. Para alegres e tristes. Deus e o
diabo.
Minha necessidade não tem a ver com a obrigação
de entregar o material para edição, mas sim com urgências pessoais,
inexoráveis. Não quero calar a boca nesse mundo estúpido, que resolve tudo na
bala, covarde que só vendo. Não quero, entretanto, cair na armadilha desse mesmo
mundo, objetivo e interesseiro, e virar um gatilho, um fogo contra o peito
daquele que não conheço, daquele com o qual não concordo. Há espaço para todos
nós, digo ou quero dizer com a crônica que, a ponto de sair (feito a bala da
arma), me coça o dedo.
Vejo a jovem democracia brasileira
cair pelas sarjetas, como se fosse os bêbados de um carnaval mal bebido e mal pulado. Quanto
custou a democracia a uma geração não conta, e os mesmos que lutaram por ela
vão aos poucos encurralando-a num canto. Já ouço gritos de “curra, curra”. Há
uma torcida pelo pior. Quando sangrarmos a mulher dos trinta anos — tão bem
cantada por Balzac —, nos descobriremos incapazes. Correremos dos homens, da
polícia, mas haverá pouco espaço para nos esconder e, além do mais, por que
voltaremos a viver escondidos, exilados? Vamos nos repetir?
Escrevo a partir do meu ponto de
vista, longe da sabedoria, na medida em que caminho com meus pés no chão esburacado
das minhas impressões. Assim, claro, posso estar errado. Todo esse
disse-me-disse e esse o-ladrão-é-ele podem ser apenas desajustes temporários,
coisa que passa. Se for assim, que o acerto não venha pelas graças de um
salvador da pátria.
Preciso escrever uma crônica bêbada, mas
protegida das ressacas física e moral. Uma crônica que arranque um riso do
sisudo e um quê de preocupação do desavisado. Tenho urgências, já disse. Mais
que urgências, tenho comichões de escrevê-la e, com ela, pescar não os aplausos
dos leitores, mas o apaziguamento das minhas dúvidas, estas que são atiçadas
com o carvão da minha covardia.
Preciso escrever uma crônica que seja
um grito que me escapa, no qual eu diga — sem saber sugerir um remendo, uma
solução — não, não é assim que construiremos um país. Não mesmo.
Vou me sentar para tentar escrever tal crônica,
se é que já não a escrevi.