Acomodo-me no vagão nem luxuoso nem
simples do trem que me levará do interior de Minas a Florianópolis ou, via
Pantanal, de Quixeramobim ao último povoado ocidental do extremo sul. Mas não
existe essa possibilidade. Poderia existir, não fosse a falsa modernidade à
qual nos agarramos ao longo do século XX e que sepultou os trens, sem que
ninguém soubesse ou saiba quem garfou os trilhos.
Estou bem instalado no trem inexistente,
e de sua janela num instante passo a contemplar o sertão árido, o resto de mata
atlântica, o cerrado. (O Pantanal, preso num poema de Manoel de Barros, não
pode ser mais visto, apenas lido, mas lemos pouco.) E sobe montanha e desce
montanha. E margeia rio e se afasta de rio. Café com pão, café com pão.
Bandeira, sedento de Brasil, invade o vagão e me sequestra.
No Brasil ninguém diz “eu digo”, ninguém
diz “eu roubo”. (Tampouco eu.) Aqui, a esquerda benze meia dúzia de
empresários: mais-valia pura pra quê se cinco letras em forma de banco
abastecem os ungidos com dinheiro barato e pedalado? Aqui, a direita tem
nostalgia da palmatória, mas investe mesmo é em arma pesada e sonha com um
sistema prisional lucrativo: menino preso é capital sadio e, por isso, bom reprodutor.
O trem parece andar fora dos trilhos. Virge
Maria, que foi isso, maquinista? Nada de susto, ele avisa pelo sistema de
alto-falante, estamos apenas passando por cima de um rol de Adílios. No trem da
Central, continua em tom muito formal, a operação de passar sobre o corpo de
Adílio Cabral dos Santos ocorreu por necessidade: Quem seria o doido de
tumultuar a vida daquele que precisa chegar ao trabalho na hora? Apesar do
improviso, a profanação foi um ato de humanismo, ápice da consciência coletiva.
Agora — a voz soa bonita e cheia de si —, produzimos Adílios em prostibolatórios
de última geração e os jogamos já mortos sobre os dormentes. O trem que
conseguir esbarrar no menor número deles ganha um prêmio. Qual? Dizer que foi ideia
do outro. No Brasil gostamos de apontar o dedo e dizer “foi ele”, “foi ela”. Precavidos,
não afirmamos coisa alguma defronte do espelho. Quanta sabedoria a desse homem!
O trem-bala já contornou o Chuí e, não
tarda muito, desceremos em Manaus para, de acordo com o cardápio, comer carne
de índio tucunaré. Sou repreendido pelo vizinho de assento: Não seja inocente, o
índio é haitiano ou guianense, ninguém sabe ao certo. E não vem ao caso. Nunca
vem ao caso, e ninguém jamais sabe ao certo. O tempero vai ser nativo, corre de
boca em boca, para dar sabor à nossa eterna vingança pelo que fizeram ao bispo
Sardinha.

Há pela frente o Pico da Neblina. O
trem não está preparado para tamanha escalada, mas uma voz prática convoca homens
de fome eterna para empurrá-lo até o cume. Lembro-me de Fitzcarraldo, o
lunático filmado por Herzog, cineasta idealista que fez subir um navio pela
montanha, uma linda imagem à custa da vida de outros famintos nativos dessas mesmas
bandas amazônicas. Agora, são índios e negros — outra vez escravos, se é que algum
dia deixaram de sê-lo — os que, tropeçando em Adílios, cumprem a missão. Ninguém
poderia imaginar que ainda houvesse relho, chibata e cipó de aroeira, mas eles
estão lá, troando no lombo de quem nunca mandou dar — tamanha violência cujo efeito
colateral inesperado é deixar cada um de nós nu e, com isso, nu e transparente o
próprio Brasil. Um rápido olhar para os lados é suficiente para se perguntar:
onde foi parar a África nos machos, a Europa nas fêmeas? Quem lavou nossa
miscigenação com água oxigenada e óleo de peroba?
Para cruzar o pico e depois descer, o governo
empenhou no orçamento do ano que não vem dinheiro insuficiente e desnecessário,
diz uma voz que não é a do maquinista, sabe-se lá se de um Adílio, de um
Herzog, de um Deus dessas tantas butiques da fé espalhadas pelo Brasil. Outra
frase brota no ar: No alto do morro, passa boi, passa boiada, só não passa
solução já pronta para tormenta encomendada. Quem diz é ele, o do lado ou
aquele mais adiante, mas, segundo ele, fui eu quem disse.
Em terras tropicais, odiamos o outro.