Meu amigo Ricardo me deu “Águas-fortes cariocas” (Rocco), livro de Roberto Arlt, escritor argentino, contemporâneo de Borges, o cego. Águas-fortes era o nome da coluna que o escritor mantinha em um jornal de seu país, na qual escrevia o que se pode chamar de crônicas. Pois bem, em 1930, Arlt veio ao Rio de Janeiro, ficou por aqui uns dois ou três meses, e escreveu bastante sobre sua estadia — a Rocco, muitos anos depois, organizou o livro. Sua visão da cidade é, na perspectiva de hoje, no mínimo chocante. Primeiro, associa o carioca a um povo que não se dedica à alegria, trabalhador obstinado, que dorme cedo — várias vezes, o portenho despeja sua ira contra a cidade que, ao contrário de Buenos Aires, não tem vida depois das vinte e três horas. Mais: se surpreende com o grau de honestidade de nossa gente, incapaz de furtar o leite e o pão que, logo de manhã, são deixados à porta das casas. Nessa linha, sente falta dos malandros de sua terra, gente que lhe era próxima e que estava preocupada em achar formas seguras de assaltar uma casa. No entanto, seu maior espanto se dá quando descobre que muitos daqueles negros com quem eventualmente mantinha contato eram escravos havia menos de cinquenta anos. Escravos trabalhadores e operários incultos – novamente um contraponto com a Argentina, que, bem ou mal, tinha sindicatos e clubes que estimulavam a leitura — faziam do Brasil, na sua opinião, um país submisso. Perdemos nossa honestidade — aquela para argentino ver — nalgum momento, porém, e é aí que o olhar estrangeiro nos ajuda, temos sido um povo manso, excessivamente manso.

Sou frequentador da livraria Travessa de Botafogo e tenho dois queridos lá: o Bruno e o Leonardo. Ambos são ótimos livreiros, mas, além disso e razão pela qual são tão bons no que fazem, estudam e escrevem. Pois bem, dia desses encontrei-me com eles e, durante o papo, me indicaram a Stela do Patrocínio (“Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”, Azougue). Stela foi, assim como Bispo do Rosário, interna da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Se não entendi errado, alguma pesquisadora viu que a fala de Stela era poética e a gravou; Viviane Mosé, em contato com a gravação, transformou a fala em poema escrito. Não vou andar na corda bamba na qual Ivan Cavalcanti Proença se meteu ao dizer que Carolina Maria de Jesus — a escritora pobre e favelada autora do clássico “Quarto de despejo” — não fazia exatamente literatura, nem vou sair em defesa de ninguém, como o fez muito bem, neste caso, a Elisa Lucinda; simplesmente agradecerei a meus amigos livreiros e literatos terem me apresentado à Stela. Ela é capaz de dizer uma coisa assim: “Não deu tempo / Eu estava tomando claridade e luz / Quando a luz apagou / A claridade apagou / Tudo ficou nas trevas / Na madrugada mundial / Sem luz”. Pode ser apenas uma frase proferida por um doido, mas que frase, Deus da Poesia! Salve, Nise da Silveira, a psiquiatra que esteve na gênese de artistas tão fortes como a Stela e o Bispo.