15.6.19

Reaparece o professor

Escrito em junho de 2019 para a 19a. Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, que homenageou Gilberto Abreu, escritor, professor e político de Passos que vive em Ribeirão Preto.

Uma pequena confissão: estar aqui entre estes quatro é uma alegria sem tamanho. Quando comecei a escrever, jamais imaginei que um dia estaria na condição de colega desses escritores, sentado à mesma mesa. É muito para o Xandão da dona Haydée e do seu Joaquim.

A satisfação pessoal não termina aí, ao contrário, aí é o seu início. Estou aqui porque o homenageado de evento tão importante apontou a mim e aos demais passenses como parceiros de sua trajetória. Estou aqui pelo nosso Gilberto. Nosso, digo, de seus familiares, de seus leitores, de seus alunos, de seus amigos, de seus conterrâneos. Agradeço ao Gilberto e à Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto pela oportunidade de participar dessa comunhão.

Devo esclarecer que as minhas lembranças do homenageado estão embaladas em névoa. Um pouco porque sou desmemoriado, outro pouco porque há vazios e rupturas em nosso convívio. Portanto tudo que será dito aqui pode ser um delírio meu.

Nosso convívio começou em sala de aula. Gilberto foi meu professor de História no Colégio Polivalente, em Passos. Essa afirmação é incontestável. A que deveria vir colada a ela, se foi um bom professor, já me remete à zona cinzenta. Será que não me lembro, simplesmente não me lembro? Isso não é possível, pois me recordo de tantos outros professores. Cito alguns: Carabolante, Zé Leite, Leonor, Osvaldo, Marlene, Teresa, Faria, Martinha, Piruá, Marcão, Reinaldo. De cada um deles posso contar uma história, duas, falar de nossas rotinas. Do Gilberto, não. Por quê? Porque ele sumiu. Simplesmente sumiu. Um dia estava, no outro dia não estava. Sabendo-se que estávamos na década de 1970, em pleno governo Médici, é possível supor, sem grande esforço, o que teria ocorrido. Não posso afirmar nada categoricamente, nem mesmo com o querido Gilberto conversei sobre aqueles dias, mas, ora, ora... A época em que o professor que estava deixou de estar coincide com a mudança dele para Ribeirão Preto, aqui onde, não sei se na flauta, e imagino que não, ele foi abraçado, tornou-se um professor de prestígio, um político de prestígio e, por fim, consolidou-se como um escritor do andar de cima da literatura brasileira.

Bem, mas, do meu ponto de vista, nosso convívio tem outras incertezas. Um dia eu estava na porta de minha casa em Passos, ao lado de onde um pouco depois iriam morar os pais do Gilberto e seus 832 irmãos, e não sei se ele, se minha mãe — não sei, efetivamente não sei —, alguém fez com que seu primeiro livro caísse em minhas mãos de menino desinteressado por literatura. Aposto que era aquele livro. Aqui nem mesmo o contexto histórico me ajuda. Sou eu, eu mesmo e um livro — e é tudo. O primeiro livro do Gilberto, bem sei, é “Feto Outonal”, e foi ele que minha desmemória colocou em minhas mãos lá em 1975, 1976. Se me lembro do livro? Não. Apenas — e agora é a hora da verdade, pois o querido Gilberto poderá dizer, “Xandão, o que você fumava na sua adolescência? Nada disso é real, você misturou histórias, se é que não fez coisa pior” — que ele era ilustrado por outro artista passense, o multitalentoso Gustavo Lemos (já falecido). Ao lado de uma das ilustrações — da qual não me recordo, claro —, havia um versinho, desses que são anteriores a nossa existência: “Zé prequeté tira bicho do pé pra bebê com café”*. Do versinho nunca me esqueci. Do livro não lido nunca me esqueci. A literatura entra na vida da gente até quando não entra.

O que há de mais forte na figura do mestre, uma das vigas que sustentam esta festa do livro, é a imagem borrada, espectral, enfim, poética que mantenho dele.

Mas eu, homem de quase 60 anos, não poderia ficar apenas nisso. Então, ao me preparar para esta participação, corri atrás de alguns de seus livros. Não encontrei em minha casa o “Feto Outonal”, ainda que seja provável que esteja lá, que o tenha ganhado de minha mãe. Mas estavam lá “Lorca Balada Louca” e “Beijos a Gardel”.

Na leitura recente, o Xandão quase maduro poderia ter sepultado o outro que guarda apenas brumas e devaneios de um poeta que admira. Não, isso não aconteceu. Ao ler esses livros, vieram outras tantas especulações. Como é que esse cara conjuga Borges com Lorca ou Passos com o mundo? Qual é o alfabeto que só ele domina?

É um homem da utopia de uma América grande e integrada. É um homem que cultua Maiakóvski. É um homem que agregou ao vermelho o verde, arrisco a dizer que de forma pioneira.

Muitas dessas coisas estão presentes nos livros citados. O romance, uma escrito-leitura de “A morte e a bússola”, de Borges, mereceu o prêmio Guimarães Rosa, de 1990, e merece reedição. Os poemas são uma mistura de nostalgia com semeadura do futuro, o que se vê no seguinte verso de “Pelas ruas do mundo”: “Findos os meus ócios, deixe / em Passos os meus ossos. // Lá me tornarei adubo fecundo: / onde passam as ruas do Mundo.”

Por intermédio da literatura, o mistério, se não se resolve, se insinua: aquele professor que estava e deixou de estar da noite (e que noite!) para o dia (nublado por muitos anos e, agora, novamente nublado, se é que não voltamos à noite) é uma usina de humanismo. Isso me consola, me anima, me faz ter certeza de que Gilberto foi um dos meus melhores professores e, com certeza, aquele cujos distraídos e pouco estruturados ensinamentos continuam a fazer eco neste meu coração de poeta.
Como eu suspeitava, o livro existe e eu o ganhei.


* Texto adicionado depois do encontro em Ribeirão Preto: Gilberto Abreu me deu um exemplar do livro. Confirmei a autoria das ilustrações e que existe mesmo a página citada. Fiquei sabendo que Antonio Barreto é o autor do prefácio do livro, uma novidade e tanto para mim.

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