23.5.20

Viveremos em Marte

Em quarentena, a noção de espaço muda, se é que o próprio espaço não mude. Vamos com calma: a noção de espaço muda. Acostumado a caminhar — às vezes sozinho, noutras com os amigos Marco Antonio e Fernando — dez quilômetros pelo Aterro, nesta época de confinamento, às 16h, vou do quarto ao banheiro, do banheiro, passando pela sala e pela cozinha, à área de serviço e, de lá, volto ao quarto e recomeço. É uma caminhada bem menor que aquela sob o sol, margeando, como disse Lévi-Strauss, segundo Caetano Veloso, a boca banguela da praia de Botafogo — ando dez minutos e não dez quilômetros. De manhã, tomo quinze minutos de sol.

Rotina. Rotina e disciplina. Resignação com um tempero de desobediência. Se o presindecente nos quer em vida normal, estar confinado é desobediência civil. Portanto desobedeço. Mas, neste instante, quero escrever sobre o confinamento, a política em nazi menor sustenido deixo um pouco de lado, na entrelinha, sob o tapete.

Se não me organizo, nem sei o que pode acontecer. Chutar o medo, descer à rua, dançar pela calçada, entrar no mercado apenas para ver o preço do óleo da soja colhida no oeste do oeste do Centro-Oeste? Seria lindo, não fosse estúpido. Fico em casa e, à distância, participo de reuniões de trabalho em plataformas impressionantes, mas incapazes de fazer da reunião uma reunião de fato. Quando vejo, em miniaturas, todos os colegas, deparo-me com pessoas pouco preocupadas em olhar o outro ou para o outro. Ao contratempo, a solução possível. O virtual é o novo aqui, um menos aqui que o aqui de sempre, pois falta-lhe sutileza.

Estranho mundo. Criticávamos as redes sociais por nos darem a falsa sensação de proximidade, e agora é tudo que temos. Então, reescrevo a frase anterior: as redes sociais são a única forma de encontro. Me dê um emoticon ou um like e, de curtida em curtida, superemos a morte diária. De curtida em curtida, cantemos. De curtida em curtida, falemos daquele meme, daquele vídeo, daquele verso.

Depois que o espaço desmilinguiu-se e perdeu o sentido, construímos a vizinhança afetiva. Nela, o Whatsapp, o Facebook e o Instagran são as janelas abertas de onde bate-se papo com primos na Suíça, com a quase irmã na cidade natal, com um ex-colega de trabalho. Trocam-se receitas, poemas, chistes. Treta-se. Alguns vizinhos trocam de roupa sem se preocupar com o olhar curioso lançado de outra janela. Muitos, frágeis, desmoronam sem se preocupar com a própria vaidade. Por precisão, por sufocamento, escancaram-se as janelas e as portas. Os homens são ou estão ou parecem bons.

Sem querer quebrar o encanto, não continuaremos bons depois de tudo. Crucificamos Cristo, beijamos a mão de Torquemada, dizimamos autóctones em todos os hemisférios, passamos por inúmeras guerras, duas chamadas de mundiais, e, até hoje e diariamente, matamos crianças na Síria e nas favelas brasileiras. Então, me desculpem, sairemos os mesmos da quarentena, usando máscaras, é verdade e igualmente simbólico. E não apertando a mão dos amigos. E não beijando a torto e a direito. E temendo dar ao corpo o alimento do corpo alheio.


Retirado do site.


É possível salvar-se do pessimismo pensando que em breve viveremos em Marte, em breve não contaremos mais a idade em anos, mas em séculos: veja aquela criatura, um século e já está pensando em deixar a casa dos pais. Em breve, a inteligência artificial nos livrará do mal, amém. Fiquem tranquilos, eis a gota de otimismo, a espécie humana estará salva a despeito dos muitos que não têm resistido à atual ação ostensiva da morte.

Os dias são, mas não sabermos como são de fato. Esta crônica é, mas não sabemos quão crônica é. Eu, o último fio desse novelo, dessa novela, acordo e durmo varado de interrogações. Só me resta então, de minha janela pan-óptica, recitar, em tom de até logo, um verso meio de improviso e sarcástico até sob chuva de canivírus.

 

Se pedir o seu amor, meu amor,

manda-me-lô, criptografado

e higienizado em álcool em gel, safra 2020,

pela deep web,

mas não envie nudes, meu amor,

já me esqueci como ser happy.


2 comentários:

Unknown disse...

Ê beleza. Se superando, hein rapaz? Crônica num misto de angústia, humor e amor.
Ronaldo Guimarães

No Osso disse...

Fala, seu Ronaldo, obrigado pela passagem por aqui, por esta janela.