Uma de minhas irmãs confessou que anda gostando de gim, mas que é para não nos preocuparmos, toma um drinque muito de vez em quando. Não me preocupo, mas cantarolo o conselho do velho Vinícius de Moraes, uma autoridade no assunto: “o gim é um veneno, cuidado, benzinho, não beba demais”.
A pandemia me transformou em sonhador. Quer dizer, uma vez acordado, a sensação dos sonhos sai da cama comigo, mesmo que eu não me lembre exatamente deles. Às vezes, acordo angustiado, mas, como não registro os sonhos — o que, numa mesa de bar, uma psicanalista considerou um pecado —, as imagens logo se dissipam. Volto a dormir, ou não. Dia desses sonhei que espalhava uns brinquedinhos de plástico ou umas bijuterias, não consegui definir se uma coisa ou outra, sobre o capô de um Ford Rabudo. Foi como uma volta a minha infância nos anos 1960, quando os táxis de minha cidade eram velhos automóveis dos anos 1940.
Ford rabudo |
A piada criaria
uma empatia imediata entre nós dois, e ele sentaria ao meu lado. Falaríamos de
Minas, de nossas vidas em Passos e Três Pontas, cidades próximas. Quando ele
descobrisse que eu escrevia umas bobaginhas, pediria uma letra, que eu rascunharia
ali mesmo, e ele, ali mesmo, delinearia a melodia. A gente se transformaria em
parceiro, emendando um sucesso atrás do outro. Algum tempo depois, alguém faria
uma brincadeira com ele dizendo que o conhecia muito bem, ele não era o Xandão
da Haydée e do Joaquim?
Sonho bom é
sonho acordado.
Ao ver uma foto
antiga, de pessoas desconhecidas, tive muita vontade de ser uma delas. Talvez pelos
sorrisos. Ou pelo bolo, branco, semelhante à torta de abacaxi com coco que
minha mãe fazia, mas nem sempre. Ela tinha disso. Uma das primeiras vezes que meu
cunhado almoçou lá em casa, mamãe preparou um coq au vin, um trem
chique. Bem, durante os demais trinta e quatro anos vividos por ela, meu
cunhado pediu o franguinho francês. Não logrou sucesso.
Quando dona Haydée
queria, em casa se fazia doce com a casca da melancia; também com a casca, no
caso do abacaxi, se fazia o aluá, bebida, segundo ela, muito apreciada por Dom Pedro
I. Quando a senhora que comia jabuticaba com garfo e faca queria, essas coisas
de preparo delicado eram feitas. Mas só quando ela queria.
Na Copa do
Mundo de 1974, ouvi a partida entre Brasil e Polônia dentro do Fusca vermelho,
ano 1966, do meu irmão. Atravessávamos a Serra da Mantiqueira, indo do Rio a
Passos. O rádio não ficava sintonizado o tempo todo, assim, até hoje não sei se
ganhamos ou perdemos. Mas, também, era decisão de terceiro lugar, quem se preocupa
com isso?
Outra viagem entre
Rio e Passos. Dessa vez, eu dirigia, meu pai acompanhava. Fomos parados por
excesso (não muito) de velocidade. Desci do carro, meu pai desceu também e, ao chegar
perto de onde o militar anotava os dados da multa, me deu uma bronquinha, já havia
me avisado para ir devagar etc. e tal. Voltando ao carro, ele olhou o relógio e,
fazendo-se ouvir por todos, lamentou o nosso atraso, teríamos de correr.
O velho não demonstrava
interesse por uma comida específica, a não ser, talvez, pelo pudim de pão. Mas,
se o doce — feito quando mamãe queria — fosse servido na sobremesa, ele, magro
e nem um pouco guloso, comeria um pedaço pequeno. Sóbrio no gostar, impiedoso
no não gostar: naquela casa no Beco dos Aflitos, nem quando mamãe quis, se
comeu bacalhau.
2 comentários:
Então herdou o lado pândego do pai... Uma delícia de leitura! Imagino a infância maravilhosa que terá sido a tua.
Herdei, sim, mas com menos talento. O velho era fino e irônico. Abraços, sua postagem está como "desconhecido", não posso dizer seu nome.
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