18.10.24

Japona de napa

 Depois que as editoras independentes, pequenas guerreiras, passaram a armar suas tendas em Paraty durante os quatro dias da festa pioneira, pode-se dizer que a Literatura definitivamente hospedou-se na cidade histórica. Aos best-sellers, inclusive ganhadores do Nobel, aos que têm agentes literários e bons contratos, aos que disputam espaço nas livrarias e academias, junta-se a plêiade dos que correm por fora, alguns almejando pertencer à elite, outros menos preocupados com isso. De uns tempos para cá, Paraty tem lá sua diversidade a despeito de os proprietários da festa inventarem moda. Este ano tentaram – por sorte, sem sucesso – proibir as pequenas editoras de venderem seus títulos. Em uma ação deliberada em prol de algum grande grupo, como se fosse preciso, uma festa literária impedir a venda de livros, a estrela do evento, é um acinte, um ataque, quiçá um haraquiri.

Enfim, no Dia das Crianças deste ano da graça de 2024, a Literatura estava em Paraty. Eu não. Como sou parte desse mundo, se estou lá, ocupo meu espaço, se não, deixo de pertencer a ele. Assim como ocorre com qualquer famosão ausente. Isso não é lamento, é matemática. Se, nesses dias, não posso dizer que sou um escritor e que não largo as mãos da Literatura, tenho de me conformar. No entanto, segredo aqui o que aconteceu desta vez: quando a madrugada recolhia os últimos boêmios em Paraty, a Literatura batia suas asinhas, fugia momentaneamente de lá e cantava na árvore do meu prédio. Nesses momentos, dei-lhe de comer.

Um jeito de alimentar esse pássaro, ora corvo, ora pintassilgo – mas nunca pombo, nem o da paz –, é pensar na vida. Ter saudades. Cutucar o passado. Mister Brandão, o que o senhor fazia no glorioso ano de 1966? Decerto não estava preocupado com o terremoto no Usbequistão. Nem com a independência da Guiana Britânica. Pode ser que, metido entre meus irmãos mais velhos, ouvisse “Revolver”, lançamento dos Beatles daquele ano, embora só viesse a ser um beatlemaníaco (nem tanto) algum tempo depois, não com meus cinco aninhos. Tampouco me preocupava com os atos institucionais da Ditadura Militar. Em 1966, minha gente, eu batia bafinha em frente ao Cine Roxy. Aprendia a andar de bicicleta sobre os paralelepípedos do Beco dos Aflitos. Chutava bola em qualquer canto. Dava tiros de espoleta. Confesso: namorava. À porta da casa dos avós de minha namorada, ela e eu nos sentávamos e conversávamos, não passando disso nosso namoro. Eu pousava como um herói capaz de enfrentar qualquer monstro, humano ou não, ela dava trela, gostava. Não sei como o namoro acabou, mas, taí, fomos felizes.

Lembro de mim de calça curta. Calça curta não era só um jeito de nomear o short, mas o corte e o tecido usados na sua confecção se assemelhavam aos de uma calça, só que curta. Eu andava com essa roupa e cabelo penteado para o lado. Naquela época havia muitas regras. Cabelo repartido de um lado para os meninos, do outro para as meninas. O cinto também deveria ser inserido da esquerda para a direita, na calça dos rapazes; o contrário, na cintura das moças. Como foi possível sobreviver a tanto? Olho alguns religiosos atuais e tenho a impressão de que estão naquela mesma batida, com um agravante: seus pastores estão no poder. Bem, a Igreja Católica estava em 1966, esteve desde priscas eras, está agora e estará amanhã. Nos meus cinco anos, as calças eram curtas, minhas ideias igualmente curtas e o mundo já se esmerava em ser um rascunho posto em pé sobre um lamaçal.

Cinquenta e tantos anos atrás, fazia muito frio na minha cidade. Logo cedo, mamãe olhava o termômetro pendurado do lado de fora da casa, perto da cozinha. Um dia, ali pelas seis e meia da manhã, ela me mostrou: zero grau. Destemido, tomei o rumo da escola. Vestia uma japona que podia ser usada dos dois lados. Era chique. Espere um pouco, eu não tinha mais cinco anos, talvez oito. Já cultivava alguma vaidade, como a de me exibir naquela japona. Ainda existe japona? Sumiu do mundo como a calça curta. Que garoto bonito cruzava as ruas, coberto pela peça de napa. Isso, amizade, era de napa, ou seja, uma combinação de poliéster e poliuretano. Não sinto falta do casaco sintético, até condeno seu uso, mas sinto saudades de trajá-lo – apesar de proteger pouco do frio (por baixo da camisa do colégio, metia uma peça de lã) –, de me sentir tão ajeitadinho, de acreditar na vida. Havia visto um homem descer da Apollo 11 e andar na Lua. Aquilo me dava esperança. Não pensava nesses termos, é verdade, mas que coisa fenomenal, que capacidade de irmos tão longe. Como éramos inteligentes! Somos. Dia desses saíram os ganhadores do Nobel de Física, Hinton e Hopfield (no Brasil, formariam uma boa dupla sertaneja, universitária, por suposto), um britânico, outro americano, ligados a pesquisas que abriram campo para a Inteligência Artificial. Um deles disse que, como todo avanço, a IA tem o lado bom e o ruim. A gente sabe disso, a humanidade aprendeu isso, mas a Rússia solta bombas na Ucrânia; Israel, menos por justiça, mais por vingança, bombardeia Gaza e Líbano. Maldição. Que saudades da japona sem avesso, do menino que ia dentro dela.

– Ó, Lítero-pássaro, está bom assim de alpiste ou quer mais, seu faminto?

– Nevermore.

7.10.24

Um passeio à praça inexistente

Há trinta anos, não se encaminhava à editora o texto do futuro livro em arquivo, nem se recebia ao final da revisão o PDF enviado à gráfica. Sendo assim, com o objetivo de organizar meu primeiro livro, “Contos de homem”, lançado em dezembro de 1995, obriguei-me a digitalizá-lo, tarefa que levou um ano, um ano e meio. A sorte é que essa operação, para quem não tem pressa, pode ser feita com um celular e uma ferramenta de uso descomplicado. Basicamente fotografa-se a página, que de pronto é transformada em texto. É preciso corrigir alguma captação imprecisa, mas funciona.

Com os vinte e quatro contos à mão e tomado por um espírito crítico, resolvi revisá-los. Quem faz esse trabalho é um sujeito com mais de trinta anos dedicados à literatura, o que não é uma garantia de qualidade, pois não necessariamente me tornei um escritor melhor, embora tenha hoje mais consciência do que faço. Nessa empreitada, me pergunto se, num possível relançamento, descartaria alguma coisa. Minha resposta é não. Mesmo não gostando de alguns contos, vendo que houve os que envelheceram mal, deixaria o livro exatamente como está, afinal é o reflexo do homem de trinta e quatro anos que eu era, do qual não me envergonho. Apesar disso, faço pequenos ajustes aqui e ali. Um necessário: corrigir os erros.

A andança pela praça inexistente começa ao corrigir os erros. Quando lancei o livro, enviei-o a Manoel Lobato, escritor mineiro, já falecido. Eu o conheci por intermédio de minha irmã Patrícia, ambos trabalhavam na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Lobato me deu grandes aulas – sem estar vestido de professor. Seus apontamentos são primorosos e, mais que isso, homem de controlada vaidade, altruísta da melhor estirpe, sua conduta era a de um escritor e intelectual exemplares. Recebi suas anotações, indicando erros de digitação e uma ou outra escorregada gramatical e tecendo alguns elogios, em carta, que, passado um tempo, fotografei. O resultado ficou bom, está legível, mas faltam o cabeçalho, a saudação e a despedida. Fui então procurar o original com o objetivo de refotografá-lo e juntá-lo ao material que está na pasta do livro – além dos contos, os arquivos do prefácio de João Gilberto Noll e da orelha de Nelson Vasconcelos, e as matérias de Bernardo Ajzenberg (Folha de São Paulo) e Duílio Gomes (Estado de Minas). Até agora não achei, mas...


Imagens do caderno de Haydée


Na caixa onde guardo essas coisas, encontrei fotos antigas – umas 3 x 4 de amigas, namoradas adolescentes que mal me davam a mão –, desenhos dos filhos, uma Placar de 1989, quando, depois de uns vinte anos, o Botafogo sagrou-se campeão carioca e meu filho mais velho, que se tornaria um botafoguense fiel, nasceu. Ainda do pequeno museu, um caderno de recordação de minha mãe em formato de livro, capa aveludada e seu nome escrito, com falhas, em letras douradas. Folheio o caderno. No início, algumas páginas em branco, depois amenidades que seus colegas escreveram em dois momentos. Em 1938, quando ela morava em Belo Horizonte – uma das colegas a chama de carioquinha por conta de minha mãe (nascida em Ponte Nova, Minas) ter vivido no Rio antes. De 1939 até 1941, período em que ela estava de volta ao Rio, estudando no Bennett. Os amigos registravam o que já foi tão comum entre os jovens: declaração de amizade eterna, transcrição de poemas, elogio à dona do caderno. Reproduzo a primeira coisa escrita ali: “Todos os homens são mentirosos, traidores, hipócritas e petulantes; todas as mulheres vãs, artificiais e pérfidas, mas há no mundo algo de sagrado e sublime – a união dessas duas criaturas imperfeitas”, uma citação (não consegui confirmar a autenticidade) de Musset – escritor francês do século XIX – feita pela amiga Yóle Sotomaior (se bem desvendei a letra) em dois de setembro de 1940. Há de se dizer que as entradas não respeitam uma cronologia, a essa primeira seguirão outras de 1938, 1939, 1941. Apesar da confusão temporal, é bom saber que aquelas meninas de dezessete anos lançavam um olhar crítico sobre o mundo, sem – o que já não sei se é bom ou ruim – desacreditar na harmonia da vida conjugal.

A partir de um ponto, somem as intervenções dos amigos, e minha mãe se dedica a transcrever poemas e pensamentos. Poetas brasileiros – Vicente de Carvalho, tio-bisavô das queridas Rezende, a escritora Maria Valéria e suas irmãs Viviana e Valentina, é um dos mais presentes – prevalecem sobre os demais, ainda que, no caso dos pensadores, sejam os gregos e os franceses os mais citados. Ela registra de Victor Hugo: “O riso é um camarada às vezes tão útil como o saber”. Desta vez, minha pesquisa confirmou a fonte, ainda que, recorrendo a uma inteligência artificial, tenha encontrado a frase um pouco distinta: “O riso é o começo da sabedoria”. Preciosismos à parte, minha mãe cultivou o riso, mesmo escondendo-o nas muitas horas bravas da vida.

Na noite que sucedeu meu contato com o caderno, sonhei com mamãe. Mas antes com a Patrícia. Encontrava minha irmã nas escadas do prédio onde moro. Era tudo tão alegre, bem poderia – e pode – ser verdade. Depois aparecia minha mãe. Na realidade, uma mulher sem nenhum de seus traços – nem de ninguém que eu conheça –, dizendo-se minha mãe. Não sei, acho que hackearam as redes sociais do céu ou dos sonhos. Há uma impostora no lugar da dona Haydée.