7.10.24

Um passeio à praça inexistente

Há trinta anos, não se encaminhava à editora o texto do futuro livro em arquivo, nem se recebia ao final da revisão o PDF enviado à gráfica. Sendo assim, com o objetivo de organizar meu primeiro livro, “Contos de homem”, lançado em dezembro de 1995, obriguei-me a digitalizá-lo, tarefa que levou um ano, um ano e meio. A sorte é que essa operação, para quem não tem pressa, pode ser feita com um celular e uma ferramenta de uso descomplicado. Basicamente fotografa-se a página, que de pronto é transformada em texto. É preciso corrigir alguma captação imprecisa, mas funciona.

Com os vinte e quatro contos à mão e tomado por um espírito crítico, resolvi revisá-los. Quem faz esse trabalho é um sujeito com mais de trinta anos dedicados à literatura, o que não é uma garantia de qualidade, pois não necessariamente me tornei um escritor melhor, embora tenha hoje mais consciência do que faço. Nessa empreitada, me pergunto se, num possível relançamento, descartaria alguma coisa. Minha resposta é não. Mesmo não gostando de alguns contos, vendo que houve os que envelheceram mal, deixaria o livro exatamente como está, afinal é o reflexo do homem de trinta e quatro anos que eu era, do qual não me envergonho. Apesar disso, faço pequenos ajustes aqui e ali. Um necessário: corrigir os erros.

A andança pela praça inexistente começa ao corrigir os erros. Quando lancei o livro, enviei-o a Manoel Lobato, escritor mineiro, já falecido. Eu o conheci por intermédio de minha irmã Patrícia, ambos trabalhavam na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Lobato me deu grandes aulas – sem estar vestido de professor. Seus apontamentos são primorosos e, mais que isso, homem de controlada vaidade, altruísta da melhor estirpe, sua conduta era a de um escritor e intelectual exemplares. Recebi suas anotações, indicando erros de digitação e uma ou outra escorregada gramatical e tecendo alguns elogios, em carta, que, passado um tempo, fotografei. O resultado ficou bom, está legível, mas faltam o cabeçalho, a saudação e a despedida. Fui então procurar o original com o objetivo de refotografá-lo e juntá-lo ao material que está na pasta do livro – além dos contos, os arquivos do prefácio de João Gilberto Noll e da orelha de Nelson Vasconcelos, e as matérias de Bernardo Ajzenberg (Folha de São Paulo) e Duílio Gomes (Estado de Minas). Até agora não achei, mas...


Imagens do caderno de Haydée


Na caixa onde guardo essas coisas, encontrei fotos antigas – umas 3 x 4 de amigas, namoradas adolescentes que mal me davam a mão –, desenhos dos filhos, uma Placar de 1989, quando, depois de uns vinte anos, o Botafogo sagrou-se campeão carioca e meu filho mais velho, que se tornaria um botafoguense fiel, nasceu. Ainda do pequeno museu, um caderno de recordação de minha mãe em formato de livro, capa aveludada e seu nome escrito, com falhas, em letras douradas. Folheio o caderno. No início, algumas páginas em branco, depois amenidades que seus colegas escreveram em dois momentos. Em 1938, quando ela morava em Belo Horizonte – uma das colegas a chama de carioquinha por conta de minha mãe (nascida em Ponte Nova, Minas) ter vivido no Rio antes. De 1939 até 1941, período em que ela estava de volta ao Rio, estudando no Bennett. Os amigos registravam o que já foi tão comum entre os jovens: declaração de amizade eterna, transcrição de poemas, elogio à dona do caderno. Reproduzo a primeira coisa escrita ali: “Todos os homens são mentirosos, traidores, hipócritas e petulantes; todas as mulheres vãs, artificiais e pérfidas, mas há no mundo algo de sagrado e sublime – a união dessas duas criaturas imperfeitas”, uma citação (não consegui confirmar a autenticidade) de Musset – escritor francês do século XIX – feita pela amiga Yóle Sotomaior (se bem desvendei a letra) em dois de setembro de 1940. Há de se dizer que as entradas não respeitam uma cronologia, a essa primeira seguirão outras de 1938, 1939, 1941. Apesar da confusão temporal, é bom saber que aquelas meninas de dezessete anos lançavam um olhar crítico sobre o mundo, sem – o que já não sei se é bom ou ruim – desacreditar na harmonia da vida conjugal.

A partir de um ponto, somem as intervenções dos amigos, e minha mãe se dedica a transcrever poemas e pensamentos. Poetas brasileiros – Vicente de Carvalho, tio-bisavô das queridas Rezende, a escritora Maria Valéria e suas irmãs Viviana e Valentina, é um dos mais presentes – prevalecem sobre os demais, ainda que, no caso dos pensadores, sejam os gregos e os franceses os mais citados. Ela registra de Victor Hugo: “O riso é um camarada às vezes tão útil como o saber”. Desta vez, minha pesquisa confirmou a fonte, ainda que, recorrendo a uma inteligência artificial, tenha encontrado a frase um pouco distinta: “O riso é o começo da sabedoria”. Preciosismos à parte, minha mãe cultivou o riso, mesmo escondendo-o nas muitas horas bravas da vida.

Na noite que sucedeu meu contato com o caderno, sonhei com mamãe. Mas antes com a Patrícia. Encontrava minha irmã nas escadas do prédio onde moro. Era tudo tão alegre, bem poderia – e pode – ser verdade. Depois aparecia minha mãe. Na realidade, uma mulher sem nenhum de seus traços – nem de ninguém que eu conheça –, dizendo-se minha mãe. Não sei, acho que hackearam as redes sociais do céu ou dos sonhos. Há uma impostora no lugar da dona Haydée.