30.11.24

Na onda

Tenho um compromisso fajuto e injustificável comigo mesmo: evito as grandes aglomerações. Não estou dizendo só de não ir a grandes jogos, shows ou eventos. Fui ao comício das Diretas Já, aqui no Rio, a shows históricos no Maracanã – Sting e Rolling Stones – e no Nilton Santos vi, no ano passado, Roger Waters e acompanho de vez em quando o Botafogo. Se na minha juventude comparecia a tudo meio empurrado, agora só na força bruta. Uso com alguma liberdade a palavra aglomeração e a associo ao movimento que leva todo mundo a ler o mesmo livro, a ver o mesmo filme, a ouvir a mesma música. Nem li “O nome da Rosa”, do Umberto Eco, nem vi o filme inspirado nele. Não fui assistir ao Paul McCartney, nunca pisei no Rock in Rio. Tenho uma penca de exemplos dos quais não me orgulho. Sofro porque perco boas coisas e, pior ainda, por me ver numa postura bem elitizada. Um entojo de gente. Arre!

Mas não me furtei a pegar a onda do momento. Não, amigos, ainda não foi o último lançamento da Anita, uma figura bem interessante, mas cuja obra desconheço quase completamente. Me refiro ao filme do Walter Salles, “Ainda estou aqui”.

Não faz muito tempo, bati um papo com um amigo estudioso da atuação dos militares no nosso país, em especial do golpe de 1964. Ele me chamou a atenção para o fato de que muitos livros, filmes e séries voltados à ditadura e seus desdobramentos carregam um alto grau de manipulação e esgarçam a história para pegar o leitor ou espectador no contrapé emocional. Usam as artimanhas das novelas televisivas, quase sempre forçando a tinta de histórias românticas ou tentando levar o público às lágrimas. É um ponto a se considerar. De todo modo, tenho como leitura recente “O corpo interminável”, da Cláudia Lage, livro que, a partir das “descobertas” de um jovem casal sobre os estragos da ditadura na vida de seus antepassados, trafega pelo caminho distante do apelo sentimental.

Meu amigo Rafael Conde, cineasta de Belo Horizonte – onde tem havido uma cena audiovisual muito interessante, particularmente no polo de Contagem (de lá saiu “Marte Um”, de Gabriel Martins, talvez o mais conhecido, mas não o único bom) –, está percorrendo o país para divulgar seu mais novo trabalho, “Zé”, baseado em livro de mesmo nome, de Samarone Lima. O filme narra a história do líder estudantil José Carlos Novais da Mata Machado, um mineiro bem-nascido, que aprofunda a visão crítica do pai sobre o golpe e passa a viver, em péssimas condições e clandestinamente, a serviço do movimento de resistência. Ele acaba preso, torturado e assassinado pela ditadura. Rafael também não faz truque dramático para conquistar o espectador. Ele expõe, com habilidade cinematográfica, uma faceta daqueles tempos sombrios.

Comecei a falar do filme arrasa bilheteria do momento (ah, como é bom ter um brasileiro nesse lugar!), aquele que, vencendo meus tolos preconceitos, fui assistir, e me perdi. Não, não me perdi, só rememorava obras que revisam a ditadura e fogem ao dramalhão, numa espécie de elaboração de resposta a meu amigo.

Em “Ainda estou aqui”, o diretor teve a chance de fazer uma senhora novela mexicana da história da família de Eunice Paiva. Afinal é uma mulher que, com cinco filhos menores, teve de dar conta de viver sem notícias do paradeiro de seu marido – o ex-deputado federal e engenheiro civil Rubens Paiva –, um dia arrancado de casa e, soube-se depois, bem depois, logo assassinado pela ditadura. O cineasta, inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, passou longe desse caminho e, contando com pelo menos três interpretações fora do comum, de Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro, enfrentou um dos piores momentos de nossa história dosando muito bem o drama pessoal e o coletivo. Sem apelação, nos dá a chance de mais uma vez reconhecer as atrocidades da ditadura, o que pode nos ajudar a vencer uma tendência brasileira de, em intervalos marcados, agarrar-nos a propostas autoritárias, inimigas do complexo convívio democrático.

Foi assim que inventamos um caçador de marajás na reta de largada da democracia; quando esta parecia estável, saímos pela rua pedindo para prender todos os corruptos. Bem-intencionados e inocentes, caímos na esparrela desse discurso que não para em pé. O movimento nos levou a um governo incompetente, desatinado e, soubemos há pouco, não só inimigo da democracia, mas também capaz de fazer qualquer coisa para jogá-la no esquecimento, inclusive matar os candidatos vitoriosos da última eleição e um juiz que segurou na careca as investidas antidemocráticas. Teremos aprendido? Não sei, mas o público dos filmes do Walter e do Rafael ou os leitores da Cláudia criam um calo, ficam esperto, não caem em conversa mole de quem vira as costas para a ciência e cultiva o ódio.

16.11.24

Avisos

Os muros falam, isso qualquer um vê ao andar nas ruas de cidade pequena ou grande, no Brasil ou fora. Minha amiga Nilma Lacerda coleciona essas falas, reflete sobre elas.

Gosto especialmente de uma para a qual já dediquei uma crônica: “Não fui eu”. Ao lê-la pela primeira vez, numa parede de Botafogo, meu bairro no Rio de Janeiro, fui imediatamente arremessado àquele período entre a infância e a adolescência, quando já não temos a inocência daquela nem a pretensa sabedoria desta. Enfim, naquele momento em que eu e meus amigos não passávamos de uns bobocas, muito mais do que continuamos a ser (me curvo ao lugar comum de que não há pós-doutorado que arranque de mim e de todos os representantes do gênero masculino a sétima série). Normalmente o não fui eu era a mentira dita por um dos amigos que deixara escapar, por distração ou de caso pensado, uma fedorenta ventosidade. No muro, não sei se inspirado nessa bobagem, o registro escancara uma característica muito brasileira, a de ninguém querer se responsabilizar por nada. É triste, mas, vamos lá, nem tão verdadeiro assim.

Venho reparando, recentemente, não na voz anônima das ruas, mas em avisos de origem clara afixados por aí. Por exemplo: no banheiro lá do trabalho, há vários papeizinhos nos lembrando que: não se deve urinar no chão nem jogar papel higiênico no vaso; é obrigatório dar descarga; é inaceitável deixar a torneira aberta. Gosto muito de um: “Por uma questão de educação e respeito, mantenha a porta fechada”. Imagino que a escolha por essa linguagem solene responda a uma crença de que as pessoas obedeçam a esse tom e não a outro. Não vou discutir isso, mas mães e pais mandam um verbo mais direto: “Tranca a porcaria dessa porta”. Enfim, num ambiente de trabalho, é melhor ser cortês.

Usamos banheiros todos os dias, e, se em nossas casas prezamos a higiene e nos comportamos dentro do que é esperado, então os banheiros públicos deveriam prescindir de avisos que bisam, de fato, as regras básicas da civilidade. (Antes de prosseguir, deixo anotado: para muita gente, água encanada, banheiro e esgoto são um sonho.) A existência desses bilhetes mostra que, no ambiente comunitário, agimos como feras. Que se danem os outros, não fui eu, mesmo que tenha sido. Comportamento triste, uma demonstração clara do que somos na vida cidadã, quer dizer, não cidadã.

A minha experiência diz que, apesar dos bilhetes – às vezes pequenos, tímidos, às vezes em letras garrafais –, os banheiros, no final do dia, estão pela hora da morte. Todos os avisos foram descumpridos. Não se deu descarga, a urina tomou conta do chão, as toalhas de papel usadas ocuparam não só a lixeira, mas também o mármore da pia, o piso, o vaso, o mictório. No sanitário masculino – não sei como é no feminino –, os bilhetes não se criam, são um borrão na arquitetura que, nas entrelinhas, mesmo as inexistentes, documentam parte de nosso fracasso.

Esses dias fomos tomar chope eu e quatro amigos, três escritoras (uma vive fora do Brasil) e um escritor. Não nos víamos havia um tempo. Aliás, a moradora de Portugal e uma das que aqui vivem se encontravam pela primeira vez. Essa distância não tem nos impedido de manter uma troca intensa e honesta de nossa produção literária. O mundo virtual, cheio de perigos, permite aproximações como esta. O importante é que fomos tomar chope e a qualquer instante teríamos de, como se diz, tirar a água do joelho. Chegada a minha vez, um pouco antes de abrir a porta e correr ao mictório, me deparei com a reprodução de um documento timbrado, afixada numa parede lateral. O aviso não tinha a ver com normas de higiene voltadas aos cervejeiros. Está ali, porque, a meu juízo, o cômodo amplo que antecede o banheiro convida a outros usos. Em cópia ruim, lê-se: “Proibido dormir neste local. Administração”.

Nesse caso, não vejo um transbordamento de alguma de nossas mazelas sociais, me parece, isso sim, que é comum alguém se deixar ficar naquele lugar. Pode ser um bêbado, um morador de rua, um trabalhador longe de casa, uma pessoa que não quer mais voltar à vida de sempre. A administração deveria rever a norma, acolher essa gente.




4.11.24

Nudes literários

 

A neta

Escamoteada, fazendo-se de boba, de quem estava ali distraída, lendo um livro, olhando a janela, a neta devorava a avó fazendo crochê. As mãos manufatureiras pareciam determinadas, incapazes de um vacilo. Pareciam, não, eram. Coisa mais linda dessa vida. De vez em quando perguntava alguma coisa sobre o planejamento daquela passadeira, daquele colete, da peça em desenvolvimento. A avó dizia que tudo ia brotando na cabeça aos poucos. Decidia começar pelo ponto corrente, depois via que cairia bem uma parte central em picô, do qual sairiam outros pontos. Aí sentia que estava iniciando um enfeite de almofada, uma touca de frio, o que fosse. O importante, reforçava, era, na composição, perseguir o equilíbrio. Sob essa influência, a neta, tímida e atenta, começou a crochetar uns versos, de início baseados naquelas cenas cotidianas, depois, fora do ambiente domiciliar, fixando-se nas coisas da natureza e nas urbanas – a angústia dos carros, a tristeza do asfalto, a neurótica solidão da única árvore da rua. Havia em tudo a lição da avó: os poemas não poderiam ser livres, insubordinados, ao contrário, seguiriam uma receita (ainda que introjetada), no caso, as formas rígidas. Tornou-se uma sonetista deslocada, antiquada, que nunca seria reconhecida. Aliás, isso nunca a frustrou, empenhava-se em tecer, em palavras, coletes ou echarpes para frios domésticos.




 

O belo

Os poetas são muito asseados: banham-se, escovam os dentes e tiram o excesso de cera do ouvido. Às vezes se acidentam, é preciso correr a um pronto-socorro para extrair o algodão que ficou preso ao canal auditivo, ou quase lá. Mas isso é raro, assim como é raro – é conhecido um caso – o poeta, depois da limpeza do ouvido, usar a cera para lustrar os dentes.

O compromisso com a higiene é tão arraigado que se repete à exaustão a seguinte máxima: de sujo bastam os versos. Talvez por isso, ou seja, por coerência, todos os versos escritos sejam imundos. Enaltecem de forma magnífica o lixo, a lama, o pus, o excremento. Impactados, os patrícios, fiéis leitores, súditos de certo modo, se utilizam dessa poesia para definir o belo.






Marcas de leitura

Pagou um bom dinheiro pelo parecer da escritora de nome, frequentadora de festas literárias, detentora de importantes prêmios. Pagou bem mais que um bom dinheiro, recorreu a um consignado a ser quitado em noventa e seis meses. O retorno de sua autora predileta seria o empurrão a levá-la adiante, a chave do mundo encantado.

Seis meses depois, um e-mail de poucas linhas: “Seu livro tem potencial, trabalhe as passagens, retoque um pouco a personagem da mãe. Sugiro que leia Virgínia Woolf”. Cada palavra lhe custou um salário-mínimo. Cada palavra lhe custaria meses e meses – oito anos – de desconto na folha de pagamento. Palavras opacas, genéricas, anódinas. Valeria uma reclamação comercial, mesmo tudo tendo sido feito na informalidade? Expunha a parecerista em rede social? Enfiava o rabo entre as pernas e deixava de ser besta?

Passados uns dias, novo e-mail: “Esqueci de lhe dizer, o título é bem ruim”.




 

Distração

Andava na rua com uma pergunta martelando a cabeça: pra que você escreve? Por que escrever? Era melhor não ter se metido nisso, mas foi uma força avassaladora que a pegou no contrapé da passagem da infância para a adolescência. Uns amigos foram se drogar; ela, escrever. E ler. E escrever. Por que você escreve? O que a escrita lhe traz? Nem tudo se explica. Ela não criou uma personagem de si mesma, a escritora que sabe tudo. Escrevo para mudar o mundo. Escrevo em nome dos desvalidos. Escrevo para levar conforto ao leitor. Nada disso, escrevia e ponto. Comer, escrever: necessidades orgânicas. Mas quem entenderia isso? O mundo só quer saber daquilo que surge com uma intenção. O mundo é nutrido de certezas. Caminhando assim distraída, perdeu a chance de ver um neném, no colo da mãe, fazer um bruuuuuuu, babando-se todo. Perdeu a chance de ver a vida principiando.

 



A pequena alegria

Comprou o jornal de domingo, sentou-se no café. Na sessão de cultura, uma resenha de seu primeiro livro. Um petardo sem dó, que não deixou nada em pé. Pouco importava, estava no jornal. Foi o domingo mais feliz da vida.