Muita coisa aconteceu durante esse meu período de férias, embora as mais importantes estejam no rol do desacontecimento. Um cachorro que conheço superficialmente, Dado, foi minha companhia durante uma longa caminhada. Quer dizer, num percurso de cinco quilômetros, ele foi comigo até o terceiro e me abandonou do mesmo modo que se juntara a mim. Observei galinhas e galos, pavões e pavoas. Todos os dias em que estive no campo, um canarinho pousou numa árvore bem próxima de onde nos reuníamos. Descobriu-se depois que uma fêmea vivia num ninho perto dali. Formavam um casal e pareciam dialogar. Será que ela dizia para ele ir à padaria comprar pães, não muito clarinhos, tampouco aquele esturricado do dia anterior? Quem sou eu para saber? Sei da beleza, e basta. Numa noite, expulsei três vezes um besouro do meu quarto. O mesmo? Prefiro acreditar que sim. Vou além: ele queria me dizer alguma coisa, que recusei a saber qual era. Não conto detalhes do método utilizado para me livrar dele pelo simples fato de prezar os momentos de paz nas redes sociais. Seja como for, da intenção ao fato, todos sabem, vai uma grande distância, e o besouro só não voltou uma quarta vez porque me impus o isolamento radical, fechando o vitrô e, como ninguém é de ferro, ligando o ventilador.
Esse mundo bucólico me fez rascunhar um poema, logo eu cuja
intimidade com a natureza ficou na infância, no Gordurinha, a fazenda da minha
avó. De todo modo, gosto do silêncio e, enredado nele, de ler. Li muito, o que para
mim não é um desacontecimento, mas para muita gente é. Para que serve a
leitura, se pergunta o utilitarista, acumulador de dinheiro e consumidor
contumaz de uísques, pílulas e insônias.
Embora o ano novo não me reserve grandes ilusões, ao
contrário, será um dos mais complicados, minhas palpitações serenaram, me deixando
descansar. O corpo e a mente sabem se dosar. No meu caso, tudo se dá sem o
auxílio desses remédios ditos milagrosos, o que me afasta do interesse da
indústria farmacêutica. Quer dizer, consumo cápsulas para o sangue fluir melhor
e, ao contrário dos negacionistas, vacinas para me proteger razoavelmente dos
inimigos invisíveis soltos no mundo. No futuro, distante ou não, sucumbirei a
todas as armas para manter-me em pé e lúcido. Quero seguir vivo, ainda que me
filie entre os que se encantam – não é apenas respeito – com a decisão do poeta
Antônio Cícero de dar adeus à vida antes que a mente se ausentasse e o corpo
persistisse.
Grande parte desses acontecimentos miúdos, que nomeio
negando-os, se deu ao lado de amigos e familiares. Por isso, eles tomam vulto,
embora não transbordem para fora do grupo, nem mesmo para fora de mim, para ser
sincero. Assim, repercute ainda no meu descompasso uma frase ouvida no sabor
das cervejas, numa mesa grande, na qual era difícil ouvir o outro. Ou, numa conversa
reservada, o olhar que, ao perceber o blefe da minha alegria, abandonou a
galhofa e se fixou atento e solidário sobre mim. Minha alegria não é um blefe,
devo esclarecer, só está temporariamente em banho-maria. Filho de meu pai, sou
alegre e raso.
Comprei um vinho errado para levar ao campo. E não uma
garrafa, mas duas. Isso me fez escrever o poema abaixo. Considero-o um embrião
de poema – aliás, não passo de um poeta embrionário –, mas compartilho-o assim
mesmo.
Frio Temporão
no lugar do seco, o
meio seco,
que é quase doce.
No penúltimo dia do
ano faz frio
na serra, peço
então ao vinho
sua mão
companheira.
Amigo que aos olhos
dos pais
é sempre errado, ao
meu
calha também de
ser,
bebo o inconfiável, dando-me à alegria