27.1.25

Atores

Nas relações pessoais, namoro, por exemplo, não é raro um dizer que chegou ao limite, que não tem um minuto de paz. É um exagero, quem não tem um minuto de paz é a população de Gaza, os favelados desse Brasil imenso, também os de nossos países vizinhos, africanos de todos os quadrantes, ucranianos, sírios, bem, a lista é grande. Somos superlativos ao expressar nossas pequenas falências e, do mesmo modo, as alegrias miúdas. Sou a pessoa mais feliz do mundo, comi o melhor pão de queijo do universo. Enfim, as palavras nos servem para nos levar além de nós.

Ney Latorraca, em entrevista à Bruna Lombardi – se não estou enganado –, respondeu que não era bom de cama, mas de texto, sim. Uma namorada, naquela altura vivendo em Portugal, de vez em quando ligava para ele e dizia: fala, Ney, fala aquelas coisas, fala. Já o Ney Matogrosso, ao se aproximar dos cinquentas anos, respondeu a um repórter que sua vida sexual estava morna, que tinha muita preguiça de tirar a roupa. Nossos dois Neys mentiam? Isso não faz a menor diferença. Somos, eis a verdade, personagens de nós mesmos.

Lá em Passos, na minha infância... Passos é a minha infância. E parte da adolescência. Passos é a minha vida, mas isso não interessa agora. Enfim, lá havia um garoto, Tiãozinho, goleiro nato e frangueiro. Se o elogiávamos – bravo, Tião! – por agarrar uma bola, ele se atirava no campo. Esclareço. Alguém dava um chutão e Tiãozinho encaixava a bola sem precisar fazer movimento nenhum, um petardo direcionado aos seus braços. Era nessa hora que, aplaudido, ele pulava no chão. Grande Tiãozinho, ator de um único papel, mas ouso dizer, do quilate do Selton Mello, nosso conterrâneo.

Por falar no Selton, a família dele é de artistas. Seu tio, Silas, fez muitas peças com o histórico grupo Alfa, uma turma que não só atuava, como também escrevia boas peças sobre a “Ardeia”. Além do mais, muitos eram (alguns ainda são) professores, logo influenciaram um bando de garotos, eu entre eles. Me lembro do badalado diretor Gabriel Vilela, nascido no Carmo do Rio Claro, cidade vizinha a Passos, dizer que sua paixão pelo teatro teve início ou foi reforçada ao ver nosso maior ator, Gustavo Lemos, o Gugu, atuar em “O Inspetor Geral” (Gogol), dirigido pelo Reinaldo Fonseca, um dos que alimentaram minha cabecinha com migalhas da arte. Outro tio do Selton, Stanley (a letra “S” foi patenteada pela família, só faltou serem Silva), vestia-se de palhaço durante o Carnaval e era a alegria da garotada, mas não só dela. Stanley, a quem eu procurava para uma conversa logo que chegava à cidade, era exímio imitador. Uma de suas melhores imitações era a de um primo de mamãe, Dirceu, que, não sei bem por que, tinha uma voz rouca, provavelmente consequência de alguma cirurgia. Dona Haydée adorava esse primo e, quando visitada por ele, preparava um prato especial, sempre o mesmo. Meu pai morria por aquela comida que só dava o ar de sua graça naquela ocasião rara. O que ele fazia para contornar o problema? Pedia ao Stanley que passasse um trote em minha mãe imitando o primo e marcando um almoço para o dia seguinte. Mesa posta, papai lambia os beiços, enquanto mamãe cultivava uma raiva pelo bolo recebido. Raiva passageira, no outro dia já tinha se esquecido de tudo, rindo da molecagem do marido e do Stanley.

Tínhamos um vizinho que trabalhava numa loja de eletrodomésticos e, um dia, ao chegar para almoçar, me viu, distraído e assobiando – eu era de assobios –, sentado na escada de minha casa. Aproximou-se e perguntou se não compraríamos uma TV para torcer pela seleção canarinho na Copa de 1970 que estava por acontecer. Olhei bem para ele e disse que sim, inclusive minha mãe havia me pedido para passar na loja e resolver esse assunto. Um parêntese: eu tinha oito anos. Ele não se importou com minha idade, anotou a encomenda e mandou entregar, no final da tarde, uma enorme Telefunken valvulada. Minha mãe não se fez de rogada e nem se chateou com a atitude de um pirralho e de um vendedor sem vergonha, instalou a danada e, bem, a vida a partir daí foi novela, futebol, a Copa, a grande Copa, um punhado de campeonatos que acompanhei, programas de auditório, o básico dos poucos canais existentes. No início, ao assistir às novelas, eu pensava que, enquanto acompanhava a vida de umas pessoas, elas acompanhavam a minha. Todos estávamos atuando – ou, ao contrário, todos estávamos ali, na real. Acho que a tecnologia de hoje nos levou a esse ponto.

13.1.25

As férias dos desacontecimentos

 Muita coisa aconteceu durante esse meu período de férias, embora as mais importantes estejam no rol do desacontecimento. Um cachorro que conheço superficialmente, Dado, foi minha companhia durante uma longa caminhada. Quer dizer, num percurso de cinco quilômetros, ele foi comigo até o terceiro e me abandonou do mesmo modo que se juntara a mim. Observei galinhas e galos, pavões e pavoas. Todos os dias em que estive no campo, um canarinho pousou numa árvore bem próxima de onde nos reuníamos. Descobriu-se depois que uma fêmea vivia num ninho perto dali. Formavam um casal e pareciam dialogar. Será que ela dizia para ele ir à padaria comprar pães, não muito clarinhos, tampouco aquele esturricado do dia anterior? Quem sou eu para saber? Sei da beleza, e basta. Numa noite, expulsei três vezes um besouro do meu quarto. O mesmo? Prefiro acreditar que sim. Vou além: ele queria me dizer alguma coisa, que recusei a saber qual era. Não conto detalhes do método utilizado para me livrar dele pelo simples fato de prezar os momentos de paz nas redes sociais. Seja como for, da intenção ao fato, todos sabem, vai uma grande distância, e o besouro só não voltou uma quarta vez porque me impus o isolamento radical, fechando o vitrô e, como ninguém é de ferro, ligando o ventilador.





Esse mundo bucólico me fez rascunhar um poema, logo eu cuja intimidade com a natureza ficou na infância, no Gordurinha, a fazenda da minha avó. De todo modo, gosto do silêncio e, enredado nele, de ler. Li muito, o que para mim não é um desacontecimento, mas para muita gente é. Para que serve a leitura, se pergunta o utilitarista, acumulador de dinheiro e consumidor contumaz de uísques, pílulas e insônias.

Embora o ano novo não me reserve grandes ilusões, ao contrário, será um dos mais complicados, minhas palpitações serenaram, me deixando descansar. O corpo e a mente sabem se dosar. No meu caso, tudo se dá sem o auxílio desses remédios ditos milagrosos, o que me afasta do interesse da indústria farmacêutica. Quer dizer, consumo cápsulas para o sangue fluir melhor e, ao contrário dos negacionistas, vacinas para me proteger razoavelmente dos inimigos invisíveis soltos no mundo. No futuro, distante ou não, sucumbirei a todas as armas para manter-me em pé e lúcido. Quero seguir vivo, ainda que me filie entre os que se encantam – não é apenas respeito – com a decisão do poeta Antônio Cícero de dar adeus à vida antes que a mente se ausentasse e o corpo persistisse.

Grande parte desses acontecimentos miúdos, que nomeio negando-os, se deu ao lado de amigos e familiares. Por isso, eles tomam vulto, embora não transbordem para fora do grupo, nem mesmo para fora de mim, para ser sincero. Assim, repercute ainda no meu descompasso uma frase ouvida no sabor das cervejas, numa mesa grande, na qual era difícil ouvir o outro. Ou, numa conversa reservada, o olhar que, ao perceber o blefe da minha alegria, abandonou a galhofa e se fixou atento e solidário sobre mim. Minha alegria não é um blefe, devo esclarecer, só está temporariamente em banho-maria. Filho de meu pai, sou alegre e raso.

Comprei um vinho errado para levar ao campo. E não uma garrafa, mas duas. Isso me fez escrever o poema abaixo. Considero-o um embrião de poema – aliás, não passo de um poeta embrionário –, mas compartilho-o assim mesmo.

 

Frio Temporão

 

Enfim, o vinho é o errado,

no lugar do seco, o meio seco,

que é quase doce.

 

No penúltimo dia do ano faz frio

na serra, peço então ao vinho

sua mão companheira.

 

Amigo que aos olhos dos pais

é sempre errado, ao meu

calha também de ser,

 

mas nesse frio temporão,

bebo o inconfiável, dando-me à alegria

em tudo espalhada.