21.3.09

Rio de Janeiro, final de 2008


Em dezembro, como na música, Ipanema era só felicidade. Havia uma profusão de turistas, e todos, inclusive nós, os não-turistas, vestíamos roupas coloridas. Compensávamos o pouco sol do atípico dezembro que foi o de 2008 com muitos amarelos, laranjas, brancos e não sei mais que cores.


Eu e Átila fomos parar ali meio por acaso. E depois de cumprirmos nossa missão, tomamos um café. O dia era quente, não sei que idéia foi a minha de tomar café. Bem fez o Átila em pedir um mate.


(Desculpem-me se melindro alguns leitores, inclusive você, Átila, mas a verdade é que odeio mate. Não descartaria a hipótese de as substâncias contidas nele estarem fraquejando as pessoas, logo, todo esse excesso — como droga, violência, consumismo, narcisismo, egoísmo e por aí afora — seria consequência imediata da dependência criada pela bebida. O que acabo de dizer pode parecer um disparate, mas não vi pesquisa nenhuma que rejeitasse essa minha hipótese.)


Voltando para a vida fora do parêntesis: tomamos, eu meu café e Átila, coitado, seu mate. Fazia calor do pior tipo, sem sol o dia era abafado e úmido em qualquer lugar da rua. É verdade que a parada naquela livraria para compartilhar essas bebidinhas — e, quase me esqueço, um pedaço bem pequeno, pero caro, de bolo de laranja — nos permitiu conversar um pouco e com isso o mundo apertado de nossas tristezinhas ficou mais ancho e quase alegre. Amigos servem para promover reviravoltas no ânimo uns dos outros, nem precisa ser em véspera de Natal e de Révellion.


Aliviados, corremos à rua com o firme propósito de subir num ônibus e despencar em Botafogo, eu na Voluntários, ele na vizinhança da Santa Úrsula. Dois minutos sob aquele calor entorpecente, não agüentamos e acenamos, não para o primeiro, que nos pareceu velho demais, e sim para o terceiro ou quarto táxi. Já que o carro era rubro-negro, ou, para ser mais exato, o estofado alternava faixas pretas com outras vermelhas, mal entramos nele tive um pressentimento desanimador: um flamenguista levando dois botafoguenses pode não dar em boa coisa. Entreguei-nos a Deus.




(Mais uma ilustração bizarra deste que vos escreve)



O piloto era boa-praça. Fez logo umas brincadeiras e avisou-nos de um congestionamento em Copacabana por conta de ser o dia em que o pessoal “expulso” do dia 31 adiantava suas oferendas a Iemanjá. Seguimos os caminhos que ele sugeriu e íamos, protegidos pelo ar-condicionado, prontos para chegar em casa e levar a vida possível: boa hoje, não muito boa amanhã, bem ruizinha nalguma manhã incerta, porém nunca completamente má: sabíamo-nos e sabemo-nos privilegiados.



Eis que tocou o celular. Não era o do Átila. Não era o meu. O chofer, pouco se lixando para lei ou mesmo para segurança, atendeu seu aparelho. Falou “alô” e imediatamente passou a se comunicar em “portunhês”. Dava expediente sobre algum programa que preparara para um gringo, amigo do gringo pendurado do outro lado da linha. Vale registrar que nosso condutor falava bem nas barbas da polícia e esta pouco se importava com o fato de um motorista levar o carro atendendo a uma chamada telefônica.





Ao encerrar a ligação, o motorista nos contou algumas de suas peripécias. Agenciava prostitutas para turistas (não só para eles, como se verá), bem como aproveitava a cumplicidade de gringos e esquentava muambas, vendidas depois a um seleto grupo de clientes. (Uma freguesa, ansiosa por um perfume de morango não sei das quantas, contatou-o durante nossa viagem.) Gabou-se, a determinada hora, de manter em seu “cardápio” uma formosura (não falou nesses termos, mas poupo-os, leitores) do centro universitário em que leciono. Quando especulei a possibilidade de ela ser minha aluna, ele desconversou, disse que não, não era aluna de economia, já nem sabia se a jóia rara estudava mesmo naquele estabelecimento. Malandro dos bons.





Enquanto atendia a uma nova chamanda, ele nos pediu que o ajudássemos com o gringo, pois apenas “improvisava o inglês”. O meu não vai além de “the book is on the table”, mas Átila fala melhor do que o Bush — não é muito difícil, segundo dizem — e tão bem quanto o Obama. Nosso não foi dado em forma de silêncio. Entreolhamo-nos sem deixar o motorista perceber nossa cumplicidade. Ocupado como estava, ouso dizer, não ia prestar muita atenção em dois insignificantes passageiros. Até se gritássemos continuaria falando seu portunhês ruim, não ligando para o fato de não contestarmos seu pedido. Perguntou-nos por perguntar, por ser do tipo falastrão..





Desci em minha casa, Átila seguiu um pouco mais. Depois eu soube, o motorista perguntou-lhe, com segundas intenções, se estava sozinho na cidade. Meu amigo estava com mulher e filho. Enfático, o motorista proferiu: “não há nada mais sublime na vida do que a família”..






Nada de novo nesta crônica. O Rio de Janeiro é essa salada onde cabem Deus, Iemanjá, malandragem, algumas que furam a fronteira da contravenção, calor e amizade. Salada que se tempera com a velha e boa ironia, graças a qual, e apesar de tudo, vamos levando a vida. Porém, não sejamos inocentes: ironia também que, aqui e ali, resvala para a cafajestice pura e simples.

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