I
É
uma bola, vê-se de longe, e cai em minha direção. Há uma tensão clara no olhar
dos que estão por perto. Meus pais entre eles. Meus irmãos também. A menina
que eu amo larga a minha mão e foge do que está prestes a acontecer. Por que o
pânico? Tenho a responsabilidade de fazer como os jogadores: matar a bola no
peito e deixar que escorra pelas pernas até alcançar meu pé direito, o bom. Não
sou nenhum Pelé, mas posso cumprir essa missão inesperada. Quando a bola chega perto,
muito perto, vejo que se trata de uma bomba. Não posso correr, todos confiam em
mim, depositaram suas vidas em minhas mãos (no peito, no pé). A bola atinge meu
peito, e o impacto é tão grande que o chão se abre e me engole. Quando a bomba
quica no buraco e volta ao ar, passo a fazer balõezinhos com ela. O movimento
leve que se segue parece o de um balão de gás subindo e descendo. Mas, de
repente, a bomba explode.
(O
despertador das seis e meia toca.)
II
Os
pássaros voam de costas, os cavalos trotam ainda que lhes faltem as patas.
(Um
grito, sem origem, perturba a madrugada.)
III
Aquela
menina que nunca sequer me notou fixa o olhar no meu. Ficamos uma eternidade
assim estáticos, olho no olho. De repente, de suas órbitas oculares começam a
sair imensos papiros. O que sai do olho esquerdo é vazio, um papel antigo,
grosso e fosco. No da direita, há uma frase que aos poucos vai se revelando.
“Agora é tarde”, é o que está escrito. Antes que eu lhe diga alguma coisa, a
menina dos meus sonhos se vira e sai correndo. Vou atrás dela, e os dois ficamos
presos a uma corrida que não nos tira do lugar. Tenho então uma ideia
aparentemente brilhante: estendo os braços para agarrar a garota. No entanto meus
braços vão se tornando grandes, elásticos e saem do meu controle. A menina se
vira para mim, e vejo que ela não é aquela que nunca sequer me notou.
(Da
mesa do almoço, sob censura frouxa da mãe, ouvem-se as piadas picantes do irmão.)
![]() |
Foto tirada em evento do "Coletivo Entre-Tempos" e trabalhada por mim. |
IV
Stela
e eu entramos em um abatedouro. Antes que eu estranhe a situação, chifres crescem
na minha cabeça. Stela muge. Os homens encarregados de nosso sacrifício se
apiedam de nós e começam a rir. Feito Ferdinando, o Touro, esfrego a pata no
chão. Cai uma chuva quente. Stela berra que é ácida.
(Sem
cobertas, a noite é fria.)
V
Tenho
a pele azul, e as pessoas, no Beco dos Aflitos, me comparam a um pelicano.
(Um
cutucão para interromper o ronco.)
VI
Quando vou entrar no palco, as luzes se apagam.
Roberto Carlos passa por mim e diz daquele jeito dele: “que coisa, bicho”,
depois mete o dedo no interruptor, entra no palco e o mundo acaba.
(Às
quatro da tarde, dorme-se a sesta ou a noite sem fim.)
VII
Eu
e Deus jogamos porrinha. Ganho. Deus chora.
(O sono dobra o cabo dos dias.)