Para Vanessa e Pedro
No segundo dia da Flip de 2017, longe da festa, acordei, vesti o short, a camiseta, o boné, o tênis e, disposto, caminhei de Botafogo à Gávea, uma boa distância. Fui ao Instituto Moreira Sales ver a exposição com as fotografias tiradas por Chichico Alkmim em seu estúdio em Diamantina, mantido entre 1920 e 1950 mais ou menos. Suas fotos captam a emoção humana de forma impressionante. Uma menina acompanhava a exposição com familiares e fez um comentário pertinente: não há um único sorriso em todos aqueles rostos. É verdade, as expressões são graves, em grande parte porque deveriam ser instantâneos para documento, mas também, especulo, porque são pessoas humildes, quem sabe um pouco assustadas com o aparato tecnológico, as luzes, tudo isso que uma foto então demandava. Há mulheres bebendo cerveja, há um bar repleto de homens que leem jornal, há estudantes uniformizados, há religiosos. Muitos negros, inclusive entre os estudantes. Muitas mulheres, algumas em sessões eleitorais. Lamentei o fato de, por intermédio daqueles registros, constatar mais uma vez que o Brasil subaproveitou a oportunidade do fim da escravidão e a de ter dado às mulheres direito ao voto relativamente cedo.
Foto do acervo do Instituto Moreira Sales. |
Na manhã seguinte, eu veria o vídeo no qual a senhora Diva Guimarães — uma negra paranaense, professora por quarenta anos — levanta-se durante a palestra em que o ator Lázaro Ramos participava lá em Paraty e faz um dos depoimentos mais lúcidos e duros que já ouvi. Dona Diva bem poderia ter saído de uma foto de Chichiko para nos dizer que falhamos. São palavras dela a respeito da escravidão: “Aparentemente a gente teve uma libertação, que não existe até hoje”. A senhora, na sua argumentação, faz um discurso veemente sobre a importância da educação, ecoando aquelas fotos com negros e negras trajando uniformes.
Depois da ida ao instituto, depois do almoço, depois do cinema, mas antes de saber de dona Diva e de ter a companhia da querida Vanessa e do querido Pedro, amigos de meus filhos que tomo como meus também, ao sentar-me num quiosque que vende cerveja artesanal e de onde se podia ouvir um trio mandar ver o velho e bom rock’n’roll, me dei conta de que todos os escritores da cidade haviam se debandado para Paraty e por lá ficariam alguns dias.
Senti então que eu tinha uma imensa responsabilidade, a cidade estava sob os meus cuidados. Não que tivesse de dar conta da violência, do desemprego, das mazelas que de alguma maneira apareciam nas fotos de Chichico e que viriam a ser denunciadas — sem que eu ainda soubesse, repito — por dona Diva, portanto, antigas, duradouras e não exclusivas do Rio de Janeiro. A cidade estava sob minha responsabilidade poética, e só eu poderia contemplá-la com a ternura que merece e exige. Quando meus jovens amigos chegaram, lancei sobre eles meu primeiro olhar de curador da ternura. Depois direcionei-o a duas crianças que dançavam. Não me esqueci dos músicos, da moça bonita na mesa ao lado, do vendedor da boa cerveja, do casal de gringo que filmava tudo. Eu era o Poeta Terno, o único nos mais de um mil e duzentos quilômetros quadrados ocupados pela cidade.
Assim eu estava quando cruzou à minha frente, abraçado a uma moça e esbanjando sem pudor uma alegria quase tátil, o poeta Carlito Azevedo. Não, eu não era o único escritor na cidade, e isso tirou um tremendo peso de minhas costas. Lembrei-me então de um haicai do Bashô compartilhado no Facebook pelo próprio Carlito.
“quando a lua vai embora
descobre-se que a mesa
tem quatro quinas.”
Não sei bem como terminar essa crônica de peças soltas e desconexas. Talvez contando que só fui uma vez a Paraty, quando nem existia a Flip, e lá comprei uma camiseta estampada com o rosto do Chaplin.
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