15.10.18

Um caractere a menos


A crise está atormentando a vida de muitas pessoas. Sempre há gradações, por óbvio, e chega a ser pouco ético dizer que está ruim para todos. Para muitos está péssimo. Os sem-teto formam uma grande massa que se vê em todos os cantos, retrato sem retoque da pobreza extrema.

Deixando a profundidade dos fatos e agarrando a mão da insignificância, ando desconfiado que mesmo o amor, em todas as suas formas — o erótico, o de veneração, o fraterno —, tem atendido seus fregueses na boca da noite sem dentes, escondido do astro rei e de suas desmesuras. Se é assim com o amor, o que será do resto? O que será que será que andam suspitramando no breu das tocas? A miséria grassa, o amor se esconde, os de sempre só pensam em perpetuar o sempre.

Vamos ao que interessa, nada de timidez ou de tibieza, advogo com voz de barítono, em atitude de mãe. Sim, de mãe. Vocês sabem que as mães são o topo estruturante, o resto é conversa finada. Pois bem, a crise, sim, era sobre a danada que eu discorria. A crise não está respeitando mais nada. É conta sem dinheiro, é despensa sem comida, é escritor mendigando uma ideia na bicha da burocracia. Misericórdia. Isso tudo por quê? Ora porquê.

Porque, com razão dobrada, os homens, no reinado tão bem definido por um ditado quase esquecido, “farinha pouca, meu pirão primeiro”, gostam de impedir que outros homens acessem a ternurinha do afeto, a gratidão da reciprocidade. Tudo isso e muito mais ao preço impróprio da despromoção. Cinquenta por cento do dobro do dobro do dobro.

Estou tricotando a fome hoje para morrer de frio amanhã. Estratégia errada. Também, não podia ser diferente, meu (nosso?) coach é o medo. E nem terço eu rezo. E nem à umbanda vou. E nem resguardo os domingos. A crise é um cisco que, numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, deu por si transformado num imenso coiso que, por bem, não se deve dizer o nome.

Desço ao rés do chão e poupo vocês de minhas ácidas viagens vencidas. Ao que interessa, ao que da crise herdo. Não sei se notaram, mas sequestraram parte miúda, nem por isso menos importante, do abecê que escrevo. De modo que, se preciso vociferar contra o senhor tupiniquim da guerra, só o posso fazer noutro idioma. E é assim que termino: #nothim





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