24.2.19
18.2.19
Lima Barreto e os dias de hoje
Em “Diário do hospício”, primeira parte de “O cemitério dos
vivos” (Planeta), Lima Barreto fala de uma das internações que teve, na
realidade, a última, dois anos antes de seu falecimento. O problema do homem
era a bebida, pelo menos era o que ele mesmo dizia. Tudo bem, ele dizia mais.
Reproduzo suas palavras: “De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas
devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as
dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em
quando dou sinais de loucura, deliro.”
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Quadro de Wagner Castro, 2009*. |
Apesar de todo o campo que se abre para discutir sobre a
visão que o escritor tinha de si mesmo, um dos motivos que me levam a falar do
livro é que, durante a leitura, encontrei a palavra geena, segundo o Houaiss,
“local de suplício eterno pelo fogo, inferno” ou, por extensão de sentido,
“sofrimento intenso, tormento, tortura”. Antes de buscar o significado do
substantivo, me lembrei da amiga Stella Maris Rezende — escritora, colecionadora
de prêmios Jabuti e verdadeira adoradora de palavras esquecidas — e a marquei no
Face com a intenção de saber se ela o conhecia. Não, ela não conhecia. Concordamos
que a sonoridade era bela, já o significado...
Henrique Fendrich, editor da revista Rubem, comentou que
geena “era um vale fora de Jerusalém onde se jogava lixo e cadáveres” e que
“Jesus usa muitas vezes a palavra como metáfora para o inferno”. Vera Moll — autora
de “Meu adorado Pedro” (Bom-Texto), livro baseado na vida da imperatriz Leopoldina
— reforçou a linha do Henrique ao perguntar: “não era desse modo que muitos
eram condenados à morte segundo um dos livros da Bíblia? Na Geena.” Geena é uma
palavra bíblica, que Lima Barreto usou com precisão ao escrever sobre seu
calvário de viver num hospício, esse cemitério de vivos.
A ironia à postagem veio do Marco Túlio Costa — outro
colecionador de Jabuti — ao fazer o seguinte comentário: “do modo que as coisas
vão, alguém nascido na cidade do Rio de Janeiro poderá dizer ‘sou carioca da
geena’”. Trocadilho digno de prêmio, reagiu o Henrique. Faço coro, quanto mais
agora — um agora que não é de hoje — que o estado está à deriva. O autor de “O
mágico desinventor” (Record), digníssimo Mago Túlio, como o poeta Antonio
Barreto o chama, lacrou.
Volto ao diário da terceira internação de Lima Barreto. O
interesse em lê-lo ainda hoje está não só no fato de que os “loucos” continuam
por aí e são sempre personagens curiosos (quando são apenas personagens e não
nossos familiares, sejamos honestos), mas na precisão com que Lima Barreto
mostra que uma instituição dessas é a síntese do próprio país. Barreto fala de
loucos ricos, com enfermeiros contratados, em contraposição aos despossuídos de
juízo e dinheiro. Fala de médicos que não vão além daquilo que apregoa sua
ciência, quer dizer, médico que está ali para receitar o mesmo tratamento para
qualquer espécie de doente. Mostra enfermeiros pacienciosos, que, vivendo entre
os loucos, sem o distanciamento reservado aos médicos, suportam todo tipo de
maldição e impropérios.
Olhar arguto, Lima Barreto documentou um país
que insiste em manter-se o mesmo. O Brasil, e não só o Rio, está jogado à
geena. Ah, sim, e os escritores continuamos, como tem sido desde o início dos
tempos, assoberbados pela falta de grana, com o que nos quedamos loucos mesmo
sem a bebida e sem o delírio.
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* Wagner Castro, nascido em Franca, foi um importante artista plástico que residiu até a sua morte, perto dos 100 anos, em Passos.
13.2.19
10.2.19
4.2.19
Tragédia e Férias
Aos familiares das
vítimas da Vale
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Paisagem, de Marcelo Albuquerque* |
O rompimento de uma barragem da Vale, outra vez ela, aconteceu quando eu estava de férias, em Tiradentes. O intervalo entre esta tragédia e a anterior (a de Mariana) foi pequeno, sinal de que a mineradora e todo o aparato de fiscalização não se empenharam em evitar uma nova catástrofe. O que aconteceu nos arredores de Brumadinho foi similar à atuação de um psicopata que entra na escola, mata quem vê pela frente e, por fim, se mata. É e não é similar, já que a Vale vai continuar por aí, rachando de ganhar dinheiro com o minério, descarte aqui, descarte lá os rejeitos desse minério. A empresa ressuscita no terceiro dia, embora não se possa associá-la a Cristo.
Muitos apontam a privatização como a razão de tantos
rompimentos. Não concordo. A questão, me parece, está mais associada à forma
como o capitalismo funciona por aqui: empresas viciadas em dinheiro público; fiscais
que fiscalizam mais a própria conta-corrente; legisladores e membros do
executivo que atuam com a mão (nem tão) invisível de interesses alheios aos de
seus eleitores ou do próprio Estado. Desmontar essa engrenagem é que são elas.
O Ipiranga do novo governo promete fazer e acontecer para oxigenar
o capitalismo tropical. Muita coisa que diz me soa bem, mas, claro, o sistema
não é altruísta, regras e fiscalização são imprescindíveis. Tenho a impressão
de que o homem forte da economia, um liberal puro-sangue, não acredita muito
nisso e acha que as forças da economia — alicerçadas no egoísmo nosso de cada
dia — nos levarão por si só ao equilíbrio. É aí que a vaca morta na lama, feito
a porca, entorta o rabo.
O Brasil tem nós não desatados desde a primeira infância: a
escravidão; a elite que não raro toma de assalto o poder e manda às favas os
suspiros democráticos; a injustiça econômica e social. Eu pelo menos já não me
assusto com essas jabuticabas (coitada das jabuticabas!), em compensação, me
entristeço. A tragédia humana e os danos à fauna, à flora, às águas e a tudo
mais me deixam na miséria. Somos inconsequentes e ponto.
Em Tiradentes, estava rodeado de amigos, alguns artistas, outros
não, mas todos com alma cunhada no amor ao próximo. Sofremos juntos, e, por estarmos
juntos, nos fortalecemos. O brinde levantado de forma recorrente na cidade histórica
era muito mais que um desejo de saúde particular, era como se, no alegre tim-tim,
transferíssemos ao outro uma força, pequena, mas resistente, capaz de fazer
cada um de nós acreditar na melhora deste país e, principalmente, acreditar que,
escrevendo, executando uma peça musical, talhando a madeira, preparando um
bolo, inventando um drinque ou um prato, enfim, trabalhando, seremos
protagonistas da mudança.
Porque é importante, digo que, além da minha, esta crônica ecoa
as vozes de uma Beatriz, duas Veras, uma Margarida, um Márcio, um Murilo, um
João, um Celso, uma Lilian, uma Maria Helena, uma Fernanda, um Cléber, um
Antonio, uma Graça e, como regentes, as vozes de uma Tereza e um Marco. Quando
muito somos um bando de saltimbancos ou músicos de Bremen, mas, por isso mesmo,
somos fortes no afeto e solidários na dor. No caso, na dor das famílias que viram
seus entes tornarem-se vítimas de mais uma irresponsabilidade institucional
brasileira.
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* Encontrei essa imagem num post de Antonio Barreto, poeta, conterrâneo e amigo do peito, não resisti e ilustrei minha crônica com ela, uma obra de Marcelo Albuquerque, cujo site pode ser visitado por aqui.
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