30.6.19
28.6.19
24.6.19
Burocratas contra o encanto
Começo com uma história. Eu estudava na USP e tinha um
colega de Pernambuco, um funcionário público licenciado que viveria em São
Paulo enquanto durasse o mestrado. Ao tomar uma carona com ele, vi que seu
carro tinha placa de Recife. Imaginei sua viagem para São Paulo. Saíra numa
manhã de sábado, dirigira uns 800 quilômetros, parara para descansar em Feira
de Santana, na Bahia, e seguira viagem no domingo ainda de madrugada, quando,
lutando contra o cansaço, percorrera os quase 1.900 quilômetros restantes até
São Paulo. Ou, o que parecia mais sensato, fizera outra parada em Belo
Horizonte, 1.300 e tantos quilômetros de Feira de Santana. Ou viajara sem tanta
pressa pelo litoral, curtindo praia, conquistando amores.
Quando perguntei ao colega sobre a viagem, constatei que minhas
especulações passaram longe da verdade, ele despachara o carro num navio. Sim, embarcara
o carro no bem-bom de um navio em Recife para resgatá-lo em Santos. É uma
história menor? Não, não é, só é um pouco mais fria, um carro no navio, seu
dono no avião.
Na época dessa história, o padrão das placas dos automóveis
era o de duas letras e quatro algarismos. (Meu pai tinha um KT 0108, que eu
chamava de “Catoio 8” — mas isso não tem importância.) Pouco depois, as placas
passaram a ter três letras seguidas de quatro algarismos. No mais antigo e no
que o substituiu, deveriam estar impressos o estado e o município.
No momento, está em processo a implementação de um novo
padrão, agora com três letras seguidas por um algarismo, outra letra e mais
dois algarismos. Não há mais a indicação do estado ou do município, somente a
do país. Assim, atende-se ao propósito de dar unidade aos países que formam o
Mercosul, já que segue as diretrizes indicadas por ele. Nada contra.
Nada contra, mas há um problema: ao abandonar o modelo ainda
em vigor, perdemos uma fonte primorosa de devaneios e inspiração. Coloquem-se na
Praça JK de Cássia, Minas Gerais, por onde passa um carro de Desterro, Paraíba,
com a placa GKL 0229. Não captou a questão?
Serei didático. Nas placas que estão sendo deixadas de lado,
as letras iniciais indicam o estado do primeiro emplacamento. Quando esse
modelo entrou em vigor, o Paraná serviu como teste. Por isso, carro com placa
que se inicia com a letra “A” foi necessariamente registrado lá. Pavimentei a
estrada aonde quero chegar. Continuo.
Uma placa GKL teve origem em Minas Gerais. Na do carro que
passou por Cássia, terra de tantos parentes e onde Antonio Candido passou a
infância, a cidade indicada é da Paraíba. Um cassiense, morador da Paraíba, terá
comprado o carro na cidade natal e, como vivia na outra cidade, fez o certo e o
transferiu para o local de moradia? Ou o carro teve origem em outro ponto de
Minas e o sujeito da Paraíba passava ali por Cássia por acaso, talvez com o
objetivo de, tomando a estrada para Delfinópolis, chegar à Serra da Canastra
para curtir uns dias com seu novo amor?
Perguntas sem resposta. Pergunta sem resposta se parece com poesia:
ambas alimentam os sentidos, e só (só?). A mudança ora em processo nos tira
essa desciência tão cara à imaginação. Os burocratas agem contra o encanto; é
birra deles.
As novas placas nos impedem de devanear, de imaginar a
possível história de amor que carrega um carro emplacado no Rio Grande do Sul e
transferido para Roraima estar circulando por Maceió. Alguns dirão, ora, amplia
o foco, pense num carro do Brasil nas ruas da Bolívia ou do Chile. O que não esconderá?
É verdade, mas, nesse caso, o certo é pensar em viagens turísticas — a família
ou os amigos realizando um sonho antigo —, ou, desculpem-me a dureza e o
possível preconceito, em roubo. Podem até ser histórias bonitas ou aventureiras,
mas previsíveis e menos românticas do que aquelas insinuadas pelas placas gravadas
com estado e município.
19.6.19
16.6.19
15.6.19
Reaparece o professor
Escrito em junho de 2019 para a 19a. Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, que homenageou Gilberto Abreu, escritor, professor e político de Passos que vive em Ribeirão Preto.
Uma pequena confissão:
estar aqui entre estes quatro é uma alegria sem tamanho. Quando comecei a
escrever, jamais imaginei que um dia estaria na condição de colega desses
escritores, sentado à mesma mesa. É muito para o Xandão da dona Haydée e do seu
Joaquim.
A satisfação
pessoal não termina aí, ao contrário, aí é o seu início. Estou aqui porque o
homenageado de evento tão importante apontou a mim e aos demais passenses como
parceiros de sua trajetória. Estou aqui pelo nosso Gilberto. Nosso, digo, de
seus familiares, de seus leitores, de seus alunos, de seus amigos, de seus
conterrâneos. Agradeço ao Gilberto e à Feira Nacional do Livro de Ribeirão
Preto pela oportunidade de participar dessa comunhão.
Devo esclarecer
que as minhas lembranças do homenageado estão embaladas em névoa. Um pouco
porque sou desmemoriado, outro pouco porque há vazios e rupturas em nosso
convívio. Portanto tudo que será dito aqui pode ser um delírio meu.
Nosso convívio
começou em sala de aula. Gilberto foi meu professor de História no Colégio
Polivalente, em Passos. Essa afirmação é incontestável. A que deveria vir
colada a ela, se foi um bom professor, já me remete à zona cinzenta. Será que
não me lembro, simplesmente não me lembro? Isso não é possível, pois me recordo
de tantos outros professores. Cito alguns: Carabolante, Zé Leite, Leonor,
Osvaldo, Marlene, Teresa, Faria, Martinha, Piruá, Marcão, Reinaldo. De cada um
deles posso contar uma história, duas, falar de nossas rotinas. Do Gilberto,
não. Por quê? Porque ele sumiu. Simplesmente sumiu. Um dia estava, no outro dia
não estava. Sabendo-se que estávamos na década de 1970, em pleno governo
Médici, é possível supor, sem grande esforço, o que teria ocorrido. Não posso
afirmar nada categoricamente, nem mesmo com o querido Gilberto conversei sobre aqueles
dias, mas, ora, ora... A época em que o professor que estava deixou de estar
coincide com a mudança dele para Ribeirão Preto, aqui onde, não sei se na
flauta, e imagino que não, ele foi abraçado, tornou-se um professor de
prestígio, um político de prestígio e, por fim, consolidou-se como um escritor
do andar de cima da literatura brasileira.
Bem, mas, do
meu ponto de vista, nosso convívio tem outras incertezas. Um dia eu estava na
porta de minha casa em Passos, ao lado de onde um pouco depois iriam morar os
pais do Gilberto e seus 832 irmãos, e não sei se ele, se minha mãe — não sei,
efetivamente não sei —, alguém fez com que seu primeiro livro caísse em minhas
mãos de menino desinteressado por literatura. Aposto que era aquele livro. Aqui
nem mesmo o contexto histórico me ajuda. Sou eu, eu mesmo e um livro — e é tudo.
O primeiro livro do Gilberto, bem sei, é “Feto Outonal”, e foi ele que minha desmemória
colocou em minhas mãos lá em 1975, 1976. Se me lembro do livro? Não. Apenas — e
agora é a hora da verdade, pois o querido Gilberto poderá dizer, “Xandão, o que
você fumava na sua adolescência? Nada disso é real, você misturou histórias, se
é que não fez coisa pior” — que ele era ilustrado por outro artista passense, o
multitalentoso Gustavo Lemos (já falecido). Ao lado de uma das ilustrações — da
qual não me recordo, claro —, havia um versinho, desses que são anteriores a
nossa existência: “Zé prequeté tira bicho do pé pra bebê com café”*. Do versinho
nunca me esqueci. Do livro não lido nunca me esqueci. A literatura entra na
vida da gente até quando não entra.
O que há de
mais forte na figura do mestre, uma das vigas que sustentam esta festa do livro,
é a imagem borrada, espectral, enfim, poética que mantenho dele.
Mas eu, homem
de quase 60 anos, não poderia ficar apenas nisso. Então, ao me preparar para
esta participação, corri atrás de alguns de seus livros. Não encontrei em minha
casa o “Feto Outonal”, ainda que seja provável que esteja lá, que o tenha
ganhado de minha mãe. Mas estavam lá “Lorca Balada Louca” e “Beijos a Gardel”.
Na leitura
recente, o Xandão quase maduro poderia ter sepultado o outro que guarda apenas
brumas e devaneios de um poeta que admira. Não, isso não aconteceu. Ao ler
esses livros, vieram outras tantas especulações. Como é que esse cara conjuga
Borges com Lorca ou Passos com o mundo? Qual é o alfabeto que só ele domina?
É um homem da
utopia de uma América grande e integrada. É um homem que cultua Maiakóvski. É
um homem que agregou ao vermelho o verde, arrisco a dizer que de forma
pioneira.
Muitas dessas coisas
estão presentes nos livros citados. O romance, uma escrito-leitura de “A morte
e a bússola”, de Borges, mereceu o prêmio Guimarães Rosa, de 1990, e merece
reedição. Os poemas são uma mistura de nostalgia com semeadura do futuro, o que
se vê no seguinte verso de “Pelas ruas do mundo”: “Findos os meus ócios, deixe
/ em Passos os meus ossos. // Lá me tornarei adubo fecundo: / onde passam as
ruas do Mundo.”
Por intermédio
da literatura, o mistério, se não se resolve, se insinua: aquele professor que
estava e deixou de estar da noite (e que noite!) para o dia (nublado por muitos
anos e, agora, novamente nublado, se é que não voltamos à noite) é uma usina de
humanismo. Isso me consola, me anima, me faz ter certeza de que Gilberto foi um
dos meus melhores professores e, com certeza, aquele cujos distraídos e pouco
estruturados ensinamentos continuam a fazer eco neste meu coração de poeta.
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Como eu suspeitava, o livro existe e eu o ganhei. |
* Texto adicionado depois do encontro em Ribeirão Preto: Gilberto Abreu me deu um exemplar do livro. Confirmei a autoria das ilustrações e que existe mesmo a página citada. Fiquei sabendo que Antonio Barreto é o autor do prefácio do livro, uma novidade e tanto para mim.
10.6.19
O que é então, moço?
Sonhava com uma fazenda, um pedaço de terra onde pudesse plantar umas poucas frutas e legumes. Para comer de quando em quando pamonha e curau, uma plantação igualmente modesta de milho. A felicidade, que nunca é plena e permanente, pousa de leve num mundo assim, ou assim com o acréscimo de um cavalo cujo nome poderia ser Equinócio, uma graça tola, mas, ora, as graças tolas eram a própria razão de seus devaneios.
Uma queda d’água. Árvores generosas em sombra. Galinhas poedeiras e um galo bom de bico. Um rádio de pilha e seus programas da hora da alvorada. Botinas e sela penduradas numa parede escanteada. Durante as noites, um gambá e um morcego disputando o forro da casa. Isso tudo já como excesso.
O futuro imaginado é um passado já vivido nas terras da avó, onde cavalgava um tal Segredo. Só falta ser sem luz, sem água quente, com mugido de vacas leiteiras antes mesmo do bom-dia do rádio.
Algo está errado. Esse sonhador preza a multiplicidade urbana, caótica e perigosa. De onde veio essa maldita nostalgia? (Nostalgia não; outra coisa: ilusão.) Melhor perguntar a ele.
O que há contigo, moço?
Um amor que chega ao fim? Sim, um amor nesse ponto.
Um retrocesso político? Sim, esse que se vê.
Pessimismo com o futuro do universo? Sim, a natureza não vai dar conta.
Nós, leitores de Paulo Mendes Campos, não sabemos que o amor sempre está a ponto de acabar? Quando é que a política não nos cobra atenção? Quando é que não destruímos a natureza?
Hein, moço?
Os quase sessenta anos já pesam? Sim, esse peso.
Os filhos feitos? Sim, a independência deles.
A falta de grana? Nem me diga.
Ora, antes chegar aos sessenta do que não. Que bom que os filhos vão à luta. A grana vem e vai, pense nos seus pais, pense nos amigos.
O que é então, moço? Vamos, me responda, pois eu também ando fugindo da realidade, se não sonho com a vida rural, sonho com Marte, com outra galáxia. O que está acontecendo? Não pensamos mais em mudar o mundo?
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Bansky. |
9.6.19
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