22.7.19

A crônica da falta de assunto: módulo sem noção

Quando estive em Kentucky... Epa, nunca estive em Kentucky. Na América do Norte, fui a Nova Iorque já faz algum tempo. Uma cidade adorável, inclusive, pois é um lugar do mundo, ou pelo menos foi assim que a entendi em minha pequena estadia por lá. Não só há muitos estrangeiros, como, a despeito da profusão de símbolos nacionais espalhados aos quatro cantos, aquela imensidão cujo coração é Manhattan parece ser um espaço para além do espaço. Claro, minhas observações estão feitas à luz daquela visita rápida e da música, da literatura, do cinema e do jornalismo americanos com os quais, a vida toda, mantive contato. Portanto não me leve muito a sério. Ou leve, fica a seu gosto.


Quando não estive em Kentucky, fazia frio, nada parecido com os –38ºC marcados nos termômetros de uma cidade do estado, Shelbyville, em 1994, mas fazia frio. Desestando lá naquele fevereiro friorento, pensei em um punhado de coisas fora do alcance dos Estados Unidos da América, se é que isso é possível, afinal é do Império que estou falando. Mas vamos em frente, nem eu nem você, leitor ocasional ou não, precisamos ser tão rigorosos. Aceite meu ponto de vista: pensei em coisas sem nenhuma relação com as terras que já foram dos Apaches e dos Lenapes, entre outros.

Os Lenapes, faço uma (outra?) digressão, serviram de mote a uma das mais saborosas comédias românticas americanas, “O pecado mora ao lado”, de Billy Wilder, com a estonteante Marilyn Monroe e o espetacular Tom Ewell. No começo do filme, em off, uma voz assegura que os habitantes originais da ilha de Manhattan, justamente os Lenapes, no verão, mandavam as mulheres para as montanhas, ficando, naquele pedaço de terra cercada pelos rios Hudson, Harlen e East, apenas os homens. Essa tradição teria sobrevivido aos séculos. No filme, que se passa nos anos 1950, os nova-iorquinos (ao contrário de um certo presidente, não erro o gentílico) ainda mandavam as esposas para tomar uma fresca nas montanhas. Richard Sherman, o personagem de Tom Ewell, era o senhor casado cuja mulher se ausentara, e “A garota”, Marilyn Monroe, sua vizinha: o tal pecado que morava ao lado. Quem não viu o filme pode imaginar o que acontece. Mas não basta imaginar, é bom acompanhar a trama.

Ai, ai, vamos ver se me acho. Eu dizia que, quando não estive em Kentucky, pensei determinadas coisas não relacionadas aos Estados Unidos da América. Foram muitas, mas pouparei você, leitor, de quase todas, me poupando também de me lembrar delas e, pior, de escrever sobre elas. Cuidarei de uma, a mais importante.

O que eu pensava — agora a cabeça está em Monroe, mas nem vou dar detalhes, já abusei demais, peço-lhe desculpas — era o seguinte: a falta de noção de um cronista pode levá-lo a tal grau de delírio que, diante de um passarinho, ele pia; diante de um cachorro, late; de um burro, zurra. Apesar disso, diante ou não de outro homem, o cronista sonha. O sem noção sonha, o que garante que, na ordem e na desordem natural das coisas, ainda há alguma esperança.

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