Para Manu e Tiê
Quem não acha
bom receber de um amigo um telefonema para dizer que fez parte do seu sonho?
E se não foi sonho, mas pesadelo? Pois é, foi o que me ocorreu no domingo
passado, aniversário de mês de meu confinamento e mais um dia de desatino
daquele lá, taokey?
Não vou contar todo
o pesadelo, não me pertence, é de amigo, não de um qualquer, mas um daqueles
que, em momentos egoísticos, digo: veio ao mundo só para ser meu amigo. E isso
tanto é verdade — me perdoe sua família, aqui relegada à coadjuvante — que, certa
vez, quando ele havia voltado a viver com a mãe, fui visitá-lo, e dona Guida
serviu café num jogo de xícaras que o próprio filho não sabia da existência. As
mães, chovo no molhado, reconhecem os irmãos de seus filhos à distância, em
particular os que não nasceram de seu ventre. Não posso revelar o pesadelo do
camarada, espero ter deixado clara a razão.
Posso dizer sim
que o que foi um pesadelo para ele para mim soou como uma história estranha,
engraçada até. Mas ele, opa, ele sentiu tudo aquilo no corpo. Meu amigo tomara
vinho durante o almoço e, sozinho em casa, cochilara. Acordou suado, um pouco
ofegante. Ligou para a filha, precisava falar. Ela disse, ligue para o Xandão,
conte-lhe tudo.
Alguns grupos de
pesquisa têm recolhido sonhos ocorridos durante a treva pela qual passamos. O
do meu amigo valeria fazer parte do estudo, pois envolve o ambiente de trabalho
(onde nos conhecemos há mais de trinta anos), troca de socos, transformação de
um prédio no pé do morro da Mangueira em uma caravela e uma figura misteriosa, o
vilão, de nome Malaquias. Busco por alguma referência a esse nome. Na minha
infância, quando alguém tentava enganar o outro era chamado de Malaquias ou malaca.
Não sei se teria alguma ligação com um dos profetas menores, Malaquias, é
claro, que em quatro breves capítulos do Antigo Testamento mostrou toda a ira de
Deus com os homens e anunciou a vinda do Messias. A profecia precedeu em quatro
séculos o nascimento de Cristo.
O Malaquias do
pesadelo está mais para o da minha infância, pois empenhava-se em desfazer nosso
trabalho e, enigmático em nível máximo, transformava um símbolo redondo e verde
— semelhante ao vírus do momento —, carimbado nos papéis como atestado de que a
tarefa havia sido bem-feita, em prateado. Dentro da realidade onírica, a
mudança de cor indicava um passo na direção de uma situação indesejada, limite.
Não anunciava a salvação; não há salvação em pesadelos.
Meu amigo não
cogitou mandar o pesadelo para um dos grupos de estudo, ele só queria se livrar
daquela angústia, em grande parte causada ao me ver pendurado na mais alta
gávea da caravela à deriva. De lá eu bradava, talvez em delírio, que comia
raios — e, de fato, eu os comia. Minha boca cintilava. O ditado agora é comer
raios e arrotar trovões. Por que achei graça na história num primeiro momento?
Não sei se passada uma semana ainda posso apaziguar meu amigo, mas gostaria que
ele pensasse se alguém sonha em dias noturnos como são os atuais.
Que minha mãe não
venha a saber disso de eu comer raios, seria sua segunda morte. Digo isso
porque dona Haydée temia a chuva de forma incontrolável e, quando os raios
iluminavam o céu e os trovões gritavam, ela cobria a cabeça, se armava de um
terço e desfalecia por um tempo.
Penso nela não só pela associação com os raios,
mas porque terei de fazer-lhe um pedido: que se encontre com a dona Guida,
tomem juntas um chá celestial e em seguida procurem o profeta Malaquias.
Perguntem a ele por que demorou quatro séculos entre sua profecia e a vinda de
Cristo. Ouçam atentas a autocrítica, aprendam com ela e, então, tratem de
descolar com urgência não um Messias — temos um que não honra o nome, melhor
deixar essa empreitada de lado —, mas um raio de sabedoria. Não irei comê-lo; do
alto da gávea de onde não se tem à vista terra nova ou velha, o pegarei e
lançarei sua luz sobre os homens.
7 comentários:
Que viagem louca e pandemônica! Adorei. Crônica dos fins dos tempos? Espero que não!
Bela crônica, no melhor estilo do velho Braga.
Udo e Ronaldo Guimarães, que aqui aparece como Unknown, obrigado pela visita. Udo, meu caro, fim dos tempos, não sei, mas fim de alguma coisa parece que é o que estamos vivendo. Ronaldo, meu caro, não cutuque o velho Braga, o insuperável.
ótemo!
Valeu, Hélio. Abração.
Que texto, Alexandre Brandão. Que sonho, o do amigo. E as mães. Mortais, solitárias, auscultadoras, videntes. Tudo isso sem qualquer misticismo, apenas exercício de mãe. Que venham os jogos de xícaras insuspeitos dos filhos e das filhas. Que venham os sonhos dos seus amigos, e os seus também.
Nilma, sua leitura é sempre um diálogo, uma porta que se abre ao que escrevo. Obrigado.
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