Caetano Veloso terminou sua segunda e última live de 2020 desejando ao público um excelente 2001.
Caetano está
velho? Velho, com certeza; gagá, nem um pouco. Um homem de 78 anos tropeça
física e mentalmente, ora essa! O velho cantou quase trinta canções sem
titubear. Sua voz é ainda cristalina, e ele dá conta de um repertório de um
compositor pleno e compromissado com o tempo em que está, e quem está por tanto
tempo no tempo em que está, sem se tornar um nostálgico empedernido, é, como o
tempo, atemporal. Caetano é.
Seu violão não
é nenhuma maravilha, soa bonitinho e, em Terra — a música, que está no coração
do documentário “Narciso em férias” (Renato Terra e Ricardo Calil), amarra as
pontas do que o baiano tem falado recentemente — esteve abaixo de todo o resto.
Caetano sempre disse que não é músico; músico é o Gil. O irmão de Bethânia é,
segundo ele mesmo, um amador, o que não o impede de ter feito melodias
extraordinárias (não falo do letrista, pois o assunto é o músico), de as ter
cantado e tocado extraordinariamente. Caetano é um gênio.
Gênio
controverso, que numa hora diz odiar o socialismo e noutra diz estar muito
interessado em teóricos marxistas atuais. É um intelectual talvez igualmente amador,
que transita pela avenida de suas paixões e, indiferente a nosso julgamento
sobre ele e suas ideias, trabalha as inquietudes que o movem. Ser amador, no
caso do pai dos três meninos, areja todo o seu trabalho, na música, na escrita,
no cinema.
Por que esse
velho, “rei dos animais” que deixou “a vida e a morte pra trás”, nos desejou um
ano bom por nós já vivido e enterrado e que hoje não passa de uma mancha de alegria
e tristeza na memória?
Em 2001, o país
dava pinta de que assinara um documento de compromisso duradouro com a democracia
e deixaria apenas no registro histórico as exceções autoritárias. A partir de
então, traria à cena o enfrentamento das questões realmente prementes, entre
elas e talvez as mais importantes, a disparidade e a concentração de renda. O
PSDB, na época um partido de centro-direita, civilizado e com boas cabeças,
conseguiu deter a inflação, esse desacerto da economia que atinge com mais
força os pobres — para os economistas, a inflação é um imposto regressivo, portanto
pesa mais sobre os pobres do que sobre os ricos. O PT — que, para ocupar o
poder em seguida, teve de caminhar da esquerda para o centro —, apoiado também
em boas cabeças, radicalizaria as políticas públicas visando a justamente
reduzir as desigualdades. Enfim, os extremos eram ocupados por dois partidos
próximos do centro (e, por conta do pragmatismo político, também do Centrão) e
nem tão distantes um do outro. Esse “arranjo” da democracia durou pouco, e o impeachment
de Dilma Rousseff, estimulado por um PSDB cada vez mais à direita, foi seu velório
e cremação. Das cinzas a democracia não tem renascido.
Iniciado numa
sexta-feira, 2001, com suas trezentas e cinquenta e cinco manhãs e noites, foi
um ano de sufoco mundial, parecido com o atual, embora não estivéssemos
acossados por um vírus, mas pelas mãos desumanas da cobiça — foi o ano do
ataque às Torres Gêmeas e da eleição do little Bush, presidente que deu
voz e arma para a diplomacia da vingança. Mas também, como todo e qualquer ano,
2001 foi cheio de acontecimentos da vida: nele morreram Jorge Amado, Cássia
Eller e o titânico Marcelo Fromer; prenderam, na Colômbia, Fernandinho
Beira-Mar; o Brasil entrou no mundo do racionamento de energia, um sinal do
desequilíbrio ecológico.
Em 1968, jogando-nos para a frente, Kubrick — o cineasta apontado por alguns como responsável pelo truque cinematográfico que nos faz acreditar na chegada do homem à lua — fez “2001 - uma odisseia no espaço”. No filme, em 2001, buscar-se-ia o monolito primordial, a pedra filosofal, navegando no espaço da mesma forma como os gregos navegavam no mar. Caetano, jogando-nos para trás, quer menos, quer, ao refazer o caminho dos últimos vinte anos, evitar os erros cometidos e nos dar um 2021 diferente deste que nos avizinha. Como o espaço é grande demais, Caetano talvez pense que no redivivo 2001 se possa ficar odara no terraço. E que o terraço entusiasme a praça; a praça, a cidade; a cidade, o estado; o estado, o país. Enfim, depois de recuar até 2001, 2021, um ano também com início numa sexta-feira, seria o momento de “ficar tudo joia rara, qualquer coisa que se sonhara”.
Bem que merecíamos.
PS: Ouça Odara.
3 comentários:
Adorei. Que cabeça e clareza você tem para analisar e resumir fatos tão importantes. Parabéns.
Crônica lúcida, verdadeira e triste porque não nos deixa esquecer a triste realidade em que vivemos. Mas como essa papo já tá pra lá de qualquer coisa, paro por aqui e lhe desejo um 2021 melhor do que 2001 e 2020.
Caetano não terá se equivocado, cometeu, no máximo, um ato falho, dizendo o que queria dizer, liberando o desejo real para o ano seguinte àquele 2020, em quase tudo lastimável. Desejou feliz 2001, não corrigiu, e ninguém editou. Você explicou bem por que, Alexandre. E muito bem. Que olhar agudo, rapaz.
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