Devo esta crônica a Cortázar, pois foi escrita depois de ler “Retorno de la noche”, um conto de 1941 que só veio a público após a morte do escritor, em 1984.
Acorda e, de
pronto, dá-se conta de que está vivo. Não é pouca coisa, ainda que seja o tipo
de constatação que não se compartilha com ninguém. “Hoje acordei e estava
vivo.” “Ora — reagirá o interlocutor —, que tremenda coincidência, eu também.”
É difícil encontrar a diferença naquilo que é comum a todos, mas a verdade é
que uns têm bunda grande, outros, nariz adunco e há os que possuem mãos menores
que as tão pequenas da chuva (uso a imagem de E. E. Cummings, na tradução de
Augusto de Campos).
Existem, enfim,
aqueles que se surpreendem por acordar vivos. Os tristes? Talvez sim, e é provável
que alguns deles se decepcionem com isso. Os que foram dormir depois de um
instante único de felicidade (no amor, no trabalho)? Podem temer o dia à frente,
pois há um passado radiante, com alta chance de não se repetir.
A vida lhe tem
sido boa e ruim, deprimente e excitante. Portanto, ao se beliscar para ter
certeza de que está vivo (no mínimo acordado), age como o homem que, ao se olhar
no espelho, se pergunta por que aquele nariz tão grande não sendo nem lobo para
cheirar a netinha destemida, que enfrenta o bosque. “Estou vivo.” Levanta e
dança? Continua deitado e adia chegar ao cotidiano que, pela manhã, o quer de
dentes escovados, banho tomado e disposto a trabalhar e não deixar a engrenagem
do lucro e da produção emperrar?
Na noite
anterior, dormiu na sala, diante de uma televisão fastidiosa, e nem sabe como
foi para o quarto. Na casa não existe nenhum cachorro, que, numa hora dessas,
poderia acordar, levantar as orelhas e, num suspiro, voltar ao sono. (Os
cachorros se admiram por acordar vivos?) Bem, foi uma noite como um monte de
outras na sua vida de anos que, para serem contados, demandam vários dedos a
mais que os vinte de seu corpo. Tem vontade de dançar não para celebrar alguma alegria,
algum prazer. Dançar para chamar a chuva (e agarrar-se às suas mãos) e, com ela,
limpar o quintal de sua memória da infância.
Apesar da vontade, não se levanta, nem mesmo requebra sobre o colchão. Se tivesse um cão, o bichinho já o teria tirado de suas cismas, exigido uma água limpa, a ração matinal, o passeio. Eis a percepção exata do tamanho de sua solidão. Solitário, mas com ganas de dançar. Bate palmas. Primeiro na cadência de um partido alto. Logo se perde, atravessando o samba. Tenta outro ritmo. Novo desacerto. Bate então palmas como se, à porta da casa de alguém, se anunciasse. “Olha, vim trazer essa encomenda que o papai mandou.” “Eita, menino vivo esse do Bandolim.” Guarda de um tempo nem tão delicado a delicadeza. Descobre então que será ela a sua parceira de dança. E isso o faz pular da cama.
Coloca um dos braços sobre a barriga, estica o outro no ar. Sai, de manso, dançando uma valsinha. “Não vá pisar no pé de sua parceira!” “Tranquilo, as sombras não têm pé.” Capricha, solta o corpo. Troca a música. Michael Jackson. James Brown. Jorge Benjor. Saracoteia, afinal acordou vivo. Tira a mão da barriga, abre os dois braços, olha para cima (para o céu, se estivesse ao ar livre) e dança solto e sorrindo. O horror está lá fora; lá fora com seus algozes e energúmenos, com aqueles que só se sentem vivos ao arrancar a vida de alguém. Não é nenhum desses.
4 comentários:
Uau, só por não ser um energúmeno, e não tirar a vida de ninguém, já vale estar vivo. E partir para o dia, bom ou ruim, que o espera. Quem sabe ele/ ela consegue escrever uma crônica como essa? Estar viva me lembra que posso pensar, sentir, agir, nessa provável ordem do caos humano.
Nilma, com todos os percalços, estar vivo é uma dádiva.
Brilhante! Já é muito acordar e ter o ímpeto de dançar!
Ádlei, concordo muito com você. Dançar é tudo, e requebrando a gente pode dar um jeito nessa confusão na qual estamos metidos.
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