3.7.23

A mesa vizinha

Passáramos (o escritor moderno talvez prefira escrever “havíamos passado”, mas há pássaros em passáramos, e eles acabam de pousar bem aqui) o dia indo e vindo entre o velho e o novo apartamento de meu filho e minha nora. Levávamos a parte miúda da mudança: roupa, talher, louça, material de limpeza, livros, mas também duas televisões grandes e até o tampo da mesa de jantar, de vidro, frágil. Terminada a tarefa, fomos deixar o carro na locadora e encontrar um bar para molhar as palavras, estancar o suor, jogar conversa fora, enfim, essas coisas nomeadas de um jeito a não escancarar o fato de que fomos beber. Comemorávamos a casa nova, o sucesso do nosso trabalho, o fato de termos passado o dia juntos.

No bar, sentamo-nos ao lado de uma mesa ocupada por quatro mulheres. Duas mais velhas, uma intermediária e uma menina de uns dez anos, no máximo doze. Conjecturei que era uma família e apostei que a criança estava acompanhada da bisavó, da avó e da mãe. Depois eu soube que não, eram as suas duas avós, a materna e a paterna, e sua mãe. Como eu disse, quando chegamos, elas já estavam lá e, digo agora, de lá saíram no mesmo momento que a gente. Venci a timidez quando esperávamos a condução. Aproximei-me da mãe da menina e perguntei sobre o parentesco (pelo menos essa curiosidade eu não carreguei).

Ainda no bar, elas fecharam e reabriram a conta algumas vezes, quase sempre pediam mais três chopes, embora uma das senhoras tenha passado a tomar refrigerante a partir de determinada hora. Ou tenha tomado um refrigerante e, em seguida, voltado ao chope.

A menina, que estava de costas para mim, foi quem prendeu minha atenção. Enquanto as mais velhas tagarelavam, como é o esperado em mesa de bar, ela jogava no celular, o que passou a ser habitual nos dias de hoje. Ao olhá-la batucando a tela, notei suas unhas, eram enormes e carregadas de esmalte carmim. Mais tarde, quando ela se levantou e pude vê-la de frente, percebi que estava maquiada de um jeito que nem mesmo em moças mais velhas, adolescentes e jovens tenho visto.

A menina, ao estar caracterizada como adulta, parecia presa ao passado e, agarrada ao eletrônico, ao futuro – que já é presente, mas, em perspectiva, está bem aquém do que será em breve. As outras mulheres também davam sinais ambíguos. Falavam o que eu não conseguia captar – e nem queria, afinal, estava com os meus celebrando um dia produtivo –, mas houve uma hora em que a mãe da menina, filha de uma senhora, nora da outra, usou uma expressão bem masculina para falar de uma atitude tomada certa vez: “meti o dito-cujo (não foi bem essa palavra, mas uso-a para não ferir o pássaro que voou sem sentido algum no início da crônica) na mesa”. Não é raro eu ouvir mulheres usando expressões assim. Tudo, inclusive a linguagem, anda mais complexo do que imagino.

Saio pouco de casa, talvez por isso tenha me encantado, melhor dizer – sem querer me proteger de um possível julgamento –, me assustado com aquela mesa. Não deve ser nada diferente nos muitos botequins da cidade, é que perdi a cancha, a malícia, enferrujei. Em devaneio, até escuto o pensamento irônico borbulhando na cabeça daquelas mulheres: “Por aí, seu cronista, tu não vai chegar a lugar nenhum, não envelheça tão casmurro”. Casmurro? Eu? Então me respondam: em que alcova andará escondida minha Capitu?

Um comentário:

Nilma Lacerda disse...

Mas qual a palavra escondida, Alexandre Brandão? Fico aqui com minha curiosidade insatisfeita. E que crônica mais saborosa, feita do que deve ser, quase nada, tornando-se muito. Parabéns.