15.7.23

CM e a rapadura

Carlos Magno, na certidão de nascimento e na esperança familiar de se tornar um grande homem; Classe Medião, como, depois de homem feito e cheio de história, o descreveria aos pais um novo amigo do filho, encantado com tantos brinquedos e aparelhos eletrônicos existentes na casa dos vizinhos recém-instalados no prédio; mas foi como CM que ficou conhecido. O senhor CM. O parça CM. Papi CM. CM, meu amor.

Na infância, carregou caixa de engraxate, negociou passarinho, fez uns pequenos furtos. Depois foi trabalhar na loja de esporte do seu Kalu, de lá arrumou um emprego num banco privado e, por milagre – opinião de sua mãe, baseada no fato de nunca ter visto o Carlinhos (pra mamãe não tinha essa de CM) com um caderno na mão –, passou num concurso do Banco do Brasil. Foi mandado para uma cidade distante. Não sendo conhecido de ninguém, fez do emprego um cabide para favores de toda sorte. Favores, diga-se de passagem, que custavam aos beneficiários uns bons bagarotes.

Quando visitava a mãe, levava-lhe presentes. Filho atencioso, está muito bem no serviço público, comentava envaidecida a senhora. De fato, estava, só que o recheio de sua conta tinha pouco a ver com o salário mensal. Bastava compará-lo a um colega mais ou menos contemporâneo para constatar isso. O outro estaria bem, mas ali no limite, e bastava um sopro nos ares da conjuntura para consumir sua poupança, fazê-lo tirar o filho da escola particular ou voltar a tomar a cerveja barata ou mesmo deixar de tomá-la. Já CM nem se preocupava com cenários econômicos, micro ou macro.

Assediou a moça bonita, filha de uma autoridade importante do município, e foi correspondido. Casamento, filho, construção de uma casa confortável. Um monte de amigos. Depois a transferência para a cidade grande. Quando se instalou no prédio de bairro nobre, aconteceu o caso que lhe custou a alcunha de Classe Medião. Ele achou foi graça, era isso mesmo, mas que não o chamassem assim, pois era CM. Para o filho. Para a mulher. Para a mãe; não, pra ela, não. Para os clientes vips. Nas reuniões de condomínio, à boca pequena, o chamavam do apelido que lhe desagradava, mais por pilhéria que por maldade.

Ah, a vida na capital. No início, o deslumbre. Almoços caros, bares da moda, uma amizade colorida. No entanto os arranjos do banco tornaram-se mais difíceis; difíceis, não, impossíveis. Lá no interior, os favores lhe eram pedidos e já chegavam com o orçamento definido. Era pegar ou largar. Ele sempre pegou, porque ser trouxa não era de seu feitio. Mas na capital... Deveria se oferecer? Desenrolo aquele pedido de empréstimo em troca de um pequeno agrado. Faço sua assinatura subir para o gerente agora. Sumo com essa ficha meio suja. Cidade grande, gente miúda. Vai que todo mundo ali fosse honestíssimo? Ou que o jogo fosse maior? Que ajuda em empréstimo coisa nenhuma, a questão era ocultar umas exportações, usufruir de um câmbio especial, dar um calote sem pena nas contas do governo.

CM foi vendo o dinheiro minguar e a timidez crescer. Não era desses, o que se passava? Veio então o vento outonal de uma crise econômica, e o sortudo bambeou as pernas. Prudente, dispensou a amiga. Mais adiante, a empregada. Tirou o filho da escola privada, notícia recebida com ironia no condomínio: “Agora é o Classe Medinha”. Não ficou muito mais tempo no apartamento caro e bonito, deixando para trás aluguéis, taxas e impostos atrasados. Foi morar longe e começou a economizar nas refeições, a descolar umas caronas para não enfiar o salário todo no transporte urbano. A mulher se mandou para a casa dos pais, lá na cidade do interior, e logo entrou na justiça cobrando-lhe uma pensão pra lá de escorchante.

Conheceu a solidão da pessoa sem dinheiro. Maldisse seu infortúnio e deu de beber. Um dia, embalado pela cachaça (das baratas, nada de luxo), pegou um papel e escreveu: “Sou o lateral esquerdo – ou talvez o beque central – ou talvez o quarto zagueiro – ou talvez o lateral direito – ou todos eles, incluindo o cabeça de área – de minha defesa devassada”.

Seria poeta, decidiu com a certeza do borracho. Escreveria umas coisas aqui, outras ali e, para não perder o hábito, roubaria uns versinhos. Ninguém notaria, afinal quem lê poesia nesse mundo? Se viu recitando seus versinhos nos programas vespertinos de televisão. A fama logo se traduziria em grana. Estava quase feliz com seus devaneios quando o pileque passou, deixando, ainda, a maldita ressaca no descontrole de tudo. Nessa hora, ouviu a mãe dizendo aos vizinhos: “o Carlinhos, coitado, entregou a rapadura”.



Um comentário:

Aroeira disse...

hahaha adoro o "entregou a rapadura". Um colega sempre dizia isso. Muito bom! Aquele abraço!