Para Shirley
Como ando bastante de ônibus, coleciono suas histórias e
transformo algumas em crônica. Mais de uma vez, estive nas mãos de um motorista
que não sabia o caminho e dependia da boa vontade dos passageiros. Ouvi
diálogos estranhos e até um monólogo sui generis: uma mulher, assim do
nada e falando com ninguém, passou a chamar a atenção de Lula, em seu primeiro
ou segundo mandatos, para o fato de que, quando aqui é manhã, no Japão já é
noite. Na avaliação da passageira, um atraso para o qual o presidente deveria
abrir bem os olhos. Durante uma chuva de verão, vi a água entrar pela escada de
acesso ao ônibus – um modelo moderno, rebaixado de modo a facilitar a entrada
de idosos, mas que não vejo mais em circulação –, como se fosse um passageiro
que, em vez de pagar, passa por baixo da roleta. Na crônica anterior a esta,
comentei sobre o casal que, ao descer de um ônibus, se mostrou perdido em
Botafogo.
O ônibus, mais uma vez ele, dita a crônica de hoje.
Aconteceu no dia em que o Chico Buarque completou oitenta anos, o Botafogo
arrancou, no último segundo dos dez minutos de acréscimo, um empate contra o Athletico
Paranaense e eu havia ido ao lançamento do novo romance do Haron Gamal (“Lucarna”,
editora Cajuína). Aliás, uma reunião agradável, com seus cálices de vinho e uma
conversa afiada que nos levou a Tomas Mann, cuja mãe, Julia, nasceu no Brasil,
em Paraty. Nos lembramos de “Ana em Veneza”, romance no qual João Silvério
Trevisan nos conta, a partir da mudança dos Mann do Brasil para a Alemanha, o
encontro de Julia, de Ana, a escrava levada daqui para lá, e do compositor
brasileiro Alberto Nepomuceno. Embasado em vasta pesquisa, Trevisan, ao
confrontar o fim dos séculos XIX e XX e manobrando ficção e ensaio, produziu, a
juízo de Haron e meu, um clássico.
Na saída do lançamento, peguei o 435, Gávea-Grajaú. Mal
entrei, o motorista falou alguma coisa que não captei o que era. Na continuação
da viagem, supus que havia feito alguma graça, pois ele brincava com todo
mundo. Prestei mais atenção quando entrou um vendedor. Antes de anunciar seus
produtos, ele se aproximou da roleta e, como é de praxe e em agradecimento,
ofereceu um doce a quem lhe franqueara a entrada. Os dois trocaram um dedo de
prosa. Como tudo foi falado em voz alta, soubemos que o condutor por dezoito
anos esteve naquele corre do vendedor. Terminada a conversa, os produtos foram anunciados
sem que ninguém tivesse comprado uma mariola sequer. O vendedor desceu ouvindo
as palavras animadoras do colega – “vai com Deus, tudo vai dar certo”. Em
seguida, um menino sentado à minha frente abriu a janela e muito educadamente
foi repreendido. O ar estava ligado, alertou o condutor. O menino entendeu o
que era para ser feito, e a mãe, que estava noutro banco, ouviu um tremendo
elogio – “que orgulho de garoto!”
Entraram, então, duas mulheres vestidas para festas juninas
– uma de vestidinho de chita florido, a outra de chapéu de palha, cavanhaque e
bigode pintados a lápis e, como se dizia na minha infância, calça rancheira. O
motorista as recebeu com entusiasmo. Num instante os três cantavam músicas de
São João, Santo Antônio e São Pedro e, no instante seguinte, éramos informados de
que Nilson – acho que era esse seu nome – fazia anos. O ônibus inteiro entoou o
Parabéns. No ponto seguinte, o motô – como são carinhosamente chamados pelos
cariocas – se levantou, chamou a mulher mais tagarela, a vestida de homem, abriu
os braços para ela, que não furtou de se aninhar no abraço, e disse que nunca
havia dirigido num dia tão bom, que a vida era mesmo bela. Ela, por sua vez, confessou
que seria difícil abandonar aquele mundo e externou seu desejo de
continuar com ele naquela viagem e nas próximas. Antes de voltar à direção, ele
fez uma imitação de Silvio Santos e nos autorizou a chamá-lo pelo nome do
apresentador, uma vez que os amigos assim o faziam. As mulheres desceram no
próximo ponto, mas antes deram o endereço de suas casas, novamente em voz alta
e sem a menor preocupação. Uma vive no Tabajaras, a outra na Figueiredo
Magalhães. Essa coisa do endereço foi importante porque uma delas esqueceu uma
marmita, e Silvio Santos – em versão melhorada, negra, gorda e risonha – se
prontificou a deixá-la na portaria da casa da passageira quando repassasse por
lá.
Naquele dia, eu carregava uma tristeza profunda, que cresceria ainda mais na manhã seguinte: a dona do abraço mais expressivo do mundo desceria dessa espécie de transporte que apanhamos por acaso, não sabemos para onde nos levará e do qual, de supetão, somos atirados fora: a vida. Aquele alvoroço radiante da pequena viagem serviu de contraponto a meu pesar. Ainda no ônibus, revi a visita ao hospital no dia anterior. Minha amiga me deu um abraço quando cheguei, outro quando fui embora. Como sempre fazia, como nunca mais fará. Dessa vez, além do costumeiro acolhimento, repousou sobre meu corpo um conselho: que eu perseverasse na alegria, no molde do motorista do 435, das festeiras de Copacabana, dessas pessoas de quem minha amiga não teve tempo de ouvir falar.