3.6.24

Paul Auster e eu

No dia 30 de abril, aos setenta e sete anos, Paul Auster morreu em Nova York. Diante da notícia, me dei conta de que havia lido apenas um de seus livros, talvez o mais incensado, “Trilogia de Nova York”. Não bastasse a lacuna, nada me lembro daquela leitura, que deve ter ocorrido no final dos anos 1980 ou no máximo no início da década seguinte.

Na bagunça das minhas estantes, busquei seus livros e, para minha surpresa, não só tenho alguns, como estão na parte organizada da biblioteca. Peguei “Invenção da solidão” (Companhia das Letras, com tradução de Rubens Figueiredo) e li de uma sentada.

Na primeira parte, Auster conta como viveu o momento da morte do pai, relembrando a figura um tanto quanto ausente ao longo de sua vida. Em contraposição, mergulha na sua relação com o filho, buscando saber se cometia os mesmos erros do pai. Terminada essa narrativa reflexiva, passa a escrever um misto de romance e ensaio. Sua escrita então – distribuída em treze partes a que chama de livros da memória –, valendo-se de outros escritores, de obras como a Bíblia e Pinóquio, de suas memórias e a de seus familiares, lida com a questão da coincidência, que de forma muito própria reforça e é reforçada pela solidão.

A coincidência é o fio que une as peças soltas da memória, o que o leva a dizer: “Memória: o espaço em que uma coisa acontece pela segunda vez.” Aproveitando a deixa, abandono o caminho de uma resenha ou coisa que o valha para contar   uma coincidência entre uma parte do romance de Auster e um conto meu. Ele escreve:

 

Não se tratava exatamente de estar morto, mas sim de que ele ia morrer. Isto era certo, um fato imanente e absoluto. Estava deitado em um leito de hospital, acometido por uma doença fatal. Seu cabelo tinha caído em certas partes do crânio e sua cabeça estava meio careca. Duas enfermeiras vestidas de branco entraram no quarto e lhe disseram: "Hoje você vai morrer. É tarde demais para ajudá-lo". Eram quase mecânicas em sua indiferença em relação a ele. A. chorou e implorou às enfermeiras: "Sou jovem demais para morrer, não quero morrer agora". "É tarde demais”, responderam as enfermeiras. “Agora temos de raspar sua cabeça." Com lágrimas escorrendo dos olhos, ele as deixou raspar sua cabeça. Depois elas disseram: "O caixão está logo ali. Vá até lá e deite-se dentro dele, feche os olhos e logo você vai estar morto". A. queria fugir. Mas sabia que não era permitido desobedecer às ordens delas. Foi até o caixão e entrou. Fecharam a tampa sobre ele mas, uma vez lá dentro, ficou de olhos abertos.

Então acordou pela primeira vez.

 

Em março de 2024, quase dois meses antes da morte de Auster, escrevi o pequeno conto a seguir.

 

Olha, a enfermeira falou. Aflitos, meus olhos começaram a procurar alguma novidade naquele espaço tão exíguo. Ela fez um sinal para que me acalmasse e a escutasse. Olha, na realidade, era ouça. Respirei fundo tentando deter a excitação momentânea e rara. Mirei os olhos da enfermeira e de lá entrei em seu interior. Seu fígado não tinha marcas de excessos, bactérias ruidosas percorriam o longo caminho do intestino e o coração era uma criança cujos braços estavam estendidos pedindo o colo da mãe. Com sua voz suave, mas impositiva, ela me devolveu ao exterior. Olha, repetiu, você vai morrer hoje à tarde. Morrer hoje à tarde, morrer hoje à tarde, ecoou nos meus abismos. Morrer hoje à tarde. Tomei uma de suas mãos. Ela sobrepôs a sua outra sobre a minha, e eu levei a minha ainda solta para junto das demais. Poderíamos começar uma brincadeira dessas que se fazem com as mãos, mas não, não brincamos. Reunidas, nossas mãos formaram um pequeno totem sem adoradores. Uma lágrima brotou no cantinho de um dos meus olhos e, sem que nada a detivesse, foi serpenteando minha face, escorreu pelo pescoço e, fina, nem gelada nem quente, não demorou a sumir. A enfermeira pegou uma toalha de rosto, enxugou um pouco minha testa e as pontas do cabelo que se espalhavam sobre ela. Meus cabelos, eu via pela manhã, quando pedia um espelho para me ajeitar um pouco, estavam pastosos, evidenciando a sua permanente quase sujeira. A enfermeira por fim repousou os lábios em minha testa e a beijou com ternura. Meu longo suspiro talvez tenha rompido os limites do cômodo e chegado a um pássaro, a alguém no corredor, ou simplesmente se perdido no ar como todo som. Não posso morrer na quinta? Ela pareceu se assustar, mas logo seu semblante distendeu e anunciou um sorriso que não veio. E o que você fará com essas quarenta e oito horas? Ou melhor, trinta e seis, você ainda tem as doze de hoje. Fechei os olhos, como se assim me liberasse de respondê-la e ela entendesse aquilo como um último pedido. Eu a ouvi afastar-se da cama, mexer no sofá, recolher coisas, abrir e, em seguida, fechar a porta quase sem fazer barulho.

 

Auster não defende tese alguma, mas se encanta com a realidade e se espanta com o convulso mundo da escrita. Compartilho da mesma sensação e sigo. Este texto é seu, Mr. Paul.

3 comentários:

Aroeira disse...

Muito bom! Mas aflitivo...

silvana guimarães disse...

Muito bom, Alexandre.
E terrível pelo que nos faz pensar. E arrepiar.
Um abraço!

No Osso disse...

Obrigado, Hélio e Silvana. São aflitivos, sim. Mas a vida é um pouco aflitiva. Beijos.