Nunca saio de mim/Por isso sou só//Tenho uma camada de pó/Tomo remédios coloridos//Escuto com três ouvidos/E vejo com um olho só//Agora me olha e me diz/Se estou certo//Se sou mesmo este céu deserto (“Certeza sem nuvens e estrelas”, Rodrigo de Souza Leão)
Todo
mundo arrasta uma simpatia por alguém que perdeu o prumo, saiu de órbita, bateu
as asas para nunca mais pisar na terra — os lunáticos ou nefelibatas, os que
mendigam o impalpável, os que se alimentam de luz. Todo mundo não se furta de
bater papo com o doidivanas da praça, com a tresloucada que recolhe
quinquilharias nas ruas do bairro. Todo mundo conta com sarcasmo as peripécias
de um avô meio zureta. Todos estimamos, de fato, os que não saem de si.
Todo
mundo comenta, com maldade e uma ponta de inveja, o nível de liberdade com que
guia a própria vida a jovem atriz ou o marrento jogador de futebol. Liberdade uma
ova, inveja-se o fato de um ou outro passar sem cerimônia por cima do que está
longe de ser um reles cadáver. Todo mundo suspira pelo vilão charmoso da novela
das nove. No fundo, todo mundo anseia uma aventura como a de disparar com o
carro por avenidas impróprias à velocidade ou a de beber até dizer chega e
enfrentar com ironia uma autoridade.
Todo
mundo quer comer sem pagar. E quer cagar e andar pros problemas, pras dívidas,
pro compromisso amoroso. Todo mundo deseja comprar uma passagem só de ida. Todo
mundo preferiria agir antes de pensar. Em segredo, rimos do tombo alheio.
Não
para aí, então continuo: todo mundo (eu, você e eles) gosta mesmo do
politicamente incorreto, das piadas que caçoam das minorias, da cutucada dada
nos que olham o mundo com inocência: os bem limpinhos e corteses. Todo mundo só
pensa em sexo, nada disso de amor. Todo mundo acha que dinheiro roubado é
dinheiro achado, logo, emite nota fria e lava dinheiro.
Todo
mundo come de boca aberta. E prefere espancar a educar. Todo mundo gostaria que
os outros morressem antes de chegar à velhice, que significa apenas despesa e
demência. Todo mundo acha que os recados de seu intestino cheiram à flor. Todos,
sem exceção.
No
andar da carruagem, o império do eu-sozinho acabará triunfando. Os efeitos
serão danosos, estou certo disso. E, preocupado — preocupado na mesma extensão
com que me preocupo com o provável desastre ambiental que nos ronda —, lanço
esse canto muitas vezes já cantado, inclusive por sábios. Canto que realça a
importância do outro nas nossas vidas.
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Nisso
de falar “todo mundo isso, todo mundo aquilo”, vem à minha memória nada tranchã
certa história contada pelo cineasta Bigode (Luís Carlos Lacerda) sobre sua
amiga Leila Diniz. Depois de uma apresentação — naqueles anos de chumbo da
década de 1960 —, um militar adentra o camarim da atriz, leva-lhe flores. Ela,
educada, agradece. O senhor então, em tom de ordem do dia, intima-a a jantar
com ele. Leila recusa o convite — ou desobedece à ordenança. Ele, furioso: “Eu
sei que você dá pra todo mundo.” Ela então: “Sim, dou pra todo mundo, mas não
pra qualquer um.”
Leila Diniz por Antonio Guerreiro (sem autorização do autor) |
Leila
Diniz, de fato, estava à frente do seu tempo. Quando vejo as manifestações
recentes das mulheres lutando pelo direito de tomar posse política do próprio
corpo, lembro-me dela. As “vadias” têm o espírito de Leila. Elas são a voz do
outro, aquela que todo mundo deveria ouvir antes de falar ou de agir. Eu presto
atenção nessa voz e me sinto feliz por estar vivo para isso.
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Amigos, saiu uma resenha de meu livro de crônicas (No Osso: Crônicas Selecionadas), escrita por Haron Gamal, na Folha Carioca. Para lê-la basta clicar aqui.
Aliás, a Folha Carioca passou a ser também um site. Venham visitá-lo, vale a pena. Entrem.
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