Ao Xico Sá
Meu amigo Marco Túlio Costa me inventou como cronista em
2000 – quando ele foi editor da Gazeta de Passos, jornal que a família do
antigo dono voltou a circular por algum tempo –, e, desde então, venho
perseverando nesse gênero tão brasileiro. É difícil ser cronista depois de
Machado de Assis, João do Rio, Raquel de Queiroz, Rubem Braga, Clarice
Lispector, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Luís Fernando Veríssimo (de
quem me servi ao dar título a essa crônica), mas é igualmente difícil ou, mais
ainda, escrever, simplesmente escrever, depois de Cervantes, Shakespeare,
Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar... O escritor é antes de tudo um cara de
pau, e eu sou. Além de contos e poesia, tenho dois livros elaborados com
crônicas publicadas em sua maioria aqui na Rubem.
Sinônimo de crônica é liberdade. Ela pode ter contornos
poéticos, um jeitão de contos, pode até esbarrar no ensaio, tudo isso com pouca
seriedade. Quer dizer, ela é séria, mas descompromissada. A crônica é uma
melodia assobiada por acaso. Às vezes, é uma verdadeira assobiofonia. Às vezes,
não passa de um vento sibilante.
Nada disso importa. Quer dizer, importa, mas não aqui e
agora.
Quero ir por um caminho novo, de reflexão. O leitor pensará:
quanta pretensão e ignorância. É verdade, a crônica não faz outra coisa que não
seja refletir, ainda que, no mais das vezes, sobre as minudências da vida.
Apaguem então essa coisa de caminho novo. A crônica é humilde; seus escritores,
nem sempre.
É o seguinte: nós – os cronistas também – não tivemos uma
vida fácil durante os quatro anos nos quais o Brasil foi governado pela
extrema-direita – a onda não passou, bem sei, mas estou pensando na escuridão que
se estendeu de 2019 a 2022. Na realidade, fomos sequestrados por aquela gente.
Em vez de olharmos o passarinho bicando a cacunda de um pedestre de cabeça
baixa atraído pelo celular, tínhamos de lidar com as mentiras criadas aos
borbotões. Em vez de nos determos na conversa da mesa ao lado, subíamos pelas
paredes com as pretensas piadas do despresidente. Em vez de acompanharmos a
beleza juvenil do casal que andava balançando suas mãos dadas, engolíamos seco
as estatísticas de morte pela Covid (uma bobagem, segundo eles).
Se eu fosse fazer o terceiro livro de crônicas, teria uma
dificuldade adicional. Digo adicional porque um livro de crônicas sempre nos
coloca uma dúvida: elas sobreviverão? No futuro – que pode ser imediato –, os
possíveis leitores compreenderão o quê de poesia, de graça, de reflexão o texto
carrega? Eis o perigo. Mas, depois dos quatro piores anos da vida pública
brasileira pós-democracia, montar um livro com as crônicas daquela época pode
resultar numa antologia mal-humorada, revoltada, chiliquenta: tudo que a
crônica não é ou não quer ser.
O Xico Sá, por exemplo, lançou recentemente, pela e-galáxia,
“Cão mijando no caos”, uma reunião de crônicas escritas ao sabor da indignação.
A meu ver, o livro não sofre dos problemas que antevejo porque seu autor
recorre ao humor, sem cair numa espécie de fuga, além de se valer de uma
escrita rica, inteligente, surpreendente até. Xico Sá nasceu no Crato – uma das
cidades do Cariri, Ceará – e, ao assistir a seus parentes receberem o canudo
universitário, ouve os ecos do discurso de David Foster Wallace lido em uma
formatura nos Estados Unidos. É nesse cruzar de mundos e referências que suas
crônicas fogem do lamento, ganham estilo e se sustentam.
A julgar pela crônica-prólogo, Xico também se preocupou com
essa coisa de reunir a escrita “daqueles tempos”. Começa assim: “O cão é a
crônica da ressaca cívica”. Mais adiante afirma: “Em alguns momentos, o
presente volume pode lembrar certos relatos de náufragos. (...) É simplesmente
uma narração, quase radiofônica, de como sobrevivemos ao desespero”. É
explícito aqui: “Contém, e fica a advertência, fragmentos do discurso de amor
& ódio, além de um rastilho de ressentimento”. E esclarece finalmente:
“Aqui estão os textos escolhidos para recontar esse tempo agonizante que durou
um século. Na política, nos relacionamentos, nos costumes, no amor, no sexo, na
falta de erotismo, na sacanagem propriamente dita”.
Quando olho o que escrevi naqueles quatro anos com peso de cem,
na boa medida do Xico, não me parece que equilibrei os pratos tão bem quanto
ele. Que “Cão mijando no caos” (título tirado de um poema de Drummond) fique
como testemunho incerimonioso e lamúria contida de nossa dor coletiva. Vou
olhar para a frente, sei lá, vai que passa aqui uma menina conversando com uma
borboleta, que por sua vez conversa com um pernilongo, que por sua vez não fala
nada, resguardando-se para os zunidos noturnos. Eu vivo melhor – e quem sabe
escreva melhor – quando posso, sem culpa, voltar minha atenção para essas
trivialidades.