29.7.24

Crônica numa hora dessas?

 Ao Xico Sá

Meu amigo Marco Túlio Costa me inventou como cronista em 2000 – quando ele foi editor da Gazeta de Passos, jornal que a família do antigo dono voltou a circular por algum tempo –, e, desde então, venho perseverando nesse gênero tão brasileiro. É difícil ser cronista depois de Machado de Assis, João do Rio, Raquel de Queiroz, Rubem Braga, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Luís Fernando Veríssimo (de quem me servi ao dar título a essa crônica), mas é igualmente difícil ou, mais ainda, escrever, simplesmente escrever, depois de Cervantes, Shakespeare, Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar... O escritor é antes de tudo um cara de pau, e eu sou. Além de contos e poesia, tenho dois livros elaborados com crônicas publicadas em sua maioria aqui na Rubem.

Sinônimo de crônica é liberdade. Ela pode ter contornos poéticos, um jeitão de contos, pode até esbarrar no ensaio, tudo isso com pouca seriedade. Quer dizer, ela é séria, mas descompromissada. A crônica é uma melodia assobiada por acaso. Às vezes, é uma verdadeira assobiofonia. Às vezes, não passa de um vento sibilante.

Nada disso importa. Quer dizer, importa, mas não aqui e agora.

Quero ir por um caminho novo, de reflexão. O leitor pensará: quanta pretensão e ignorância. É verdade, a crônica não faz outra coisa que não seja refletir, ainda que, no mais das vezes, sobre as minudências da vida. Apaguem então essa coisa de caminho novo. A crônica é humilde; seus escritores, nem sempre.

É o seguinte: nós – os cronistas também – não tivemos uma vida fácil durante os quatro anos nos quais o Brasil foi governado pela extrema-direita – a onda não passou, bem sei, mas estou pensando na escuridão que se estendeu de 2019 a 2022. Na realidade, fomos sequestrados por aquela gente. Em vez de olharmos o passarinho bicando a cacunda de um pedestre de cabeça baixa atraído pelo celular, tínhamos de lidar com as mentiras criadas aos borbotões. Em vez de nos determos na conversa da mesa ao lado, subíamos pelas paredes com as pretensas piadas do despresidente. Em vez de acompanharmos a beleza juvenil do casal que andava balançando suas mãos dadas, engolíamos seco as estatísticas de morte pela Covid (uma bobagem, segundo eles).

Se eu fosse fazer o terceiro livro de crônicas, teria uma dificuldade adicional. Digo adicional porque um livro de crônicas sempre nos coloca uma dúvida: elas sobreviverão? No futuro – que pode ser imediato –, os possíveis leitores compreenderão o quê de poesia, de graça, de reflexão o texto carrega? Eis o perigo. Mas, depois dos quatro piores anos da vida pública brasileira pós-democracia, montar um livro com as crônicas daquela época pode resultar numa antologia mal-humorada, revoltada, chiliquenta: tudo que a crônica não é ou não quer ser.

O Xico Sá, por exemplo, lançou recentemente, pela e-galáxia, “Cão mijando no caos”, uma reunião de crônicas escritas ao sabor da indignação. A meu ver, o livro não sofre dos problemas que antevejo porque seu autor recorre ao humor, sem cair numa espécie de fuga, além de se valer de uma escrita rica, inteligente, surpreendente até. Xico Sá nasceu no Crato – uma das cidades do Cariri, Ceará – e, ao assistir a seus parentes receberem o canudo universitário, ouve os ecos do discurso de David Foster Wallace lido em uma formatura nos Estados Unidos. É nesse cruzar de mundos e referências que suas crônicas fogem do lamento, ganham estilo e se sustentam.

A julgar pela crônica-prólogo, Xico também se preocupou com essa coisa de reunir a escrita “daqueles tempos”. Começa assim: “O cão é a crônica da ressaca cívica”. Mais adiante afirma: “Em alguns momentos, o presente volume pode lembrar certos relatos de náufragos. (...) É simplesmente uma narração, quase radiofônica, de como sobrevivemos ao desespero”. É explícito aqui: “Contém, e fica a advertência, fragmentos do discurso de amor & ódio, além de um rastilho de ressentimento”. E esclarece finalmente: “Aqui estão os textos escolhidos para recontar esse tempo agonizante que durou um século. Na política, nos relacionamentos, nos costumes, no amor, no sexo, na falta de erotismo, na sacanagem propriamente dita”.

Quando olho o que escrevi naqueles quatro anos com peso de cem, na boa medida do Xico, não me parece que equilibrei os pratos tão bem quanto ele. Que “Cão mijando no caos” (título tirado de um poema de Drummond) fique como testemunho incerimonioso e lamúria contida de nossa dor coletiva. Vou olhar para a frente, sei lá, vai que passa aqui uma menina conversando com uma borboleta, que por sua vez conversa com um pernilongo, que por sua vez não fala nada, resguardando-se para os zunidos noturnos. Eu vivo melhor – e quem sabe escreva melhor – quando posso, sem culpa, voltar minha atenção para essas trivialidades.




2 comentários:

Nilma Lacerda disse...

Leio sua crônica com atraso, meu amigo. É provável que, como diz, viva melhor – "e quem sabe escreva melhor – quando posso, sem culpa, voltar minha atenção para essas trivialidades", mas você é um mestre, não tenha dúvidas. Que achado formidável: "A crônica é uma melodia assobiada por acaso". Os mestres que cita, um Rubem Braga, um Sabino, o próprio Drummond, por exemplo, estou certa, reverenciariam você.

No Osso disse...

Querida Nilma, obrigado. Que os santos Braga, Sabino, Drummond, além dos outros santos e santas citados, me protejam.