12.8.24

Longe do algoritmo

É dada como certa a leitura de nossa mente pelos algoritmos.

Já não é surpresa que, depois de pesquisar sobre um produto, suas propagandas brotem em todo canto da internet a que se vá, das redes sociais à caixa do correio eletrônico.

Cogita-se que as conversas em torno dos celulares sejam ouvidas e associadas a mercadorias condizentes com elas, que são logo oferecidas à roda de amigos. Troca-se uma ideia sobre fotografias de infância e, ao acessar a internet, estão lá vários modelos de câmeras (hoje embutidas em celulares), scanners para digitalizar fotos antigas e espaços em nuvem para armazenamento de arquivos. Não falta ainda, para adular os fiéis ao mundo tátil, uma série de links para a aquisição de álbuns físicos e endereços onde fotografias ainda são reveladas, quer dizer, impressas.

Pincelei as consequências comerciais, mas há possibilidades políticas e de espionagem, além, claro, do treinamento da inteligência artificial, um mundo em expansão. Sugiro, como fazem os políticos – não sei se estou, ao contrário deles, sendo inocente –, desligar o celular quando for tratar de assuntos sensíveis ou desfrutar de momentos íntimos.

Temos chamado essa situação de coincidência, o que não é. Está mais para uma intromissão na vida privada, uma invasão violenta, inclusive. A coincidência, de fato, acontece no mundo real e existe desde sempre. Quem não tem uma história para contar?

Ao lançar meu primeiro livro, “Contos de homem” – que no ano que vem completará trinta anos –, fui convidado para uma conversa em uma faculdade em Belo Horizonte. Fiz uma fala e, em seguida, os alunos, a partir da leitura de um semestre, teceram comentários, encenaram algumas das histórias e ainda me entregaram pequenas cartas escritas sob o impacto da leitura. Um troço lindo.

Um dia antes, havia ido ao cinema com uma de minhas irmãs. Na saída, tomamos um café ali mesmo, no saguão. Na mesa ao lado, duas mulheres conversavam, e certa hora jurei ter ouvido meu nome. Ficou por isso mesmo, já que elas não me reconheceram (porque não me conheciam) nem fui até elas saber se ouvira bem.

O evento ao qual eu iria fora organizado pela professora Marisa Fortes Ribeiro, amiga e colega de trabalho de minha outra irmã, com quem comentei sobre a impressão de ter ouvido meu nome. Num mundo sem internet, apenas no outro dia fui ter a confirmação de que, sim, falaram de mim. Quem estava no café era outra do trabalho, e ela comentara com sua companhia sobre a ida do irmão-escritor da colega a BH. Uma conversa trivial, acrescida de certa curiosidade sobre a figura dos escritores.

Li "A dor fantasma", de Rafael Gallo, livro bastante premiado. O personagem central, um pianista cuja carreira é cortada por conta de um acidente, é um sujeito egoísta, um pouco ridículo e de fato doentio – narcisismo patológico, segundo minha amiga Vânia Osório. Terminada a leitura, parti para outra, um romance de Simenon, "O burgomestre de Furnes".

Há muito tempo, ganhei – do saudoso Horácio, fã do escritor – dois livros de Simenon, o criador do comissário Maigret. Li um deles, uma das histórias protagonizadas pelo inspetor, e supus que o burgomestre também o fosse, mas não, ele é de uma outra categoria explorada pelo profícuo escritor belga, a do romance psicológico, se é que pode ser chamado assim.

Simenon, do mesmo modo que Gallo, coloca em cena um egoísta terrível, com o agravante de o seu prefeito ser poderoso, ao contrário do pianista do brasileiro. Ambos têm filhos com problemas mentais (a filha do burgomestre em grau maior que o filho do pianista). Ambos têm uma mulher com a qual a convivência é praticamente destituída de afeto (mais no caso de Gallo do que no de Simenon, ainda que este seja mais abusivo que o outro). O burgomestre tem mais nuanças que o pianista, é menos linear, mas considerações como essa fogem ao meu objetivo, que é apontar a coincidência entre os romances distantes no tempo em mais de oitenta anos (o de Simenon de 1939, o de Gallo de 2023) e o fato de eu, sem saber disso, lê-los em sequência.

Saquei da pilha que fica na mesinha de cabeceira uma coletânea com quarenta e sete contos de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio. No prefácio, Antonio Muñoz Molina diz: "Onetti, leitor fervoroso dos romances do comissário Maigret, conhece como ninguém um recurso admirável de Simenon, o das repetições de hábitos, lugares e gestos". Por encontrar os mesmos artifícios nos contos de Onetti, a literatura do uruguaio se avizinharia da de Simenon.

Fecha-se assim um ciclo de coincidências. Coincidência verdadeira, raiz – manipulação do acaso em nossa vida –, e não a forjada pelas mãos maliciosas que vêm dominando o mundo de uma forma nunca vista, o tal algoritmo.

3 comentários:

Prof. José Reis Santos disse...

Excelente texto, caro Alexandre! Parabéns!

No Osso disse...

Obrigado pela visita, Zé.

Marilena Moraes disse...

Mto bom ..Coincidências, para mtos , não existem..