É dada como certa a leitura de nossa mente pelos algoritmos.
Já não é surpresa que, depois de pesquisar sobre um produto,
suas propagandas brotem em todo canto da internet a que se vá, das redes
sociais à caixa do correio eletrônico.
Cogita-se que as conversas em torno dos celulares sejam
ouvidas e associadas a mercadorias condizentes com elas, que são logo oferecidas
à roda de amigos. Troca-se uma ideia sobre fotografias de infância e, ao
acessar a internet, estão lá vários modelos de câmeras (hoje embutidas em
celulares), scanners para digitalizar fotos antigas e espaços em nuvem para
armazenamento de arquivos. Não falta ainda, para adular os fiéis ao mundo
tátil, uma série de links para a aquisição de álbuns físicos e endereços onde fotografias
ainda são reveladas, quer dizer, impressas.
Pincelei as consequências comerciais, mas há possibilidades
políticas e de espionagem, além, claro, do treinamento da inteligência
artificial, um mundo em expansão. Sugiro, como fazem os políticos – não sei se estou,
ao contrário deles, sendo inocente –, desligar o celular quando for tratar de
assuntos sensíveis ou desfrutar de momentos íntimos.
Temos chamado essa situação de coincidência, o que não é. Está
mais para uma intromissão na vida privada, uma invasão violenta, inclusive. A
coincidência, de fato, acontece no mundo real e existe desde sempre. Quem não
tem uma história para contar?
Ao lançar meu primeiro livro, “Contos de homem” – que no ano
que vem completará trinta anos –, fui convidado para uma conversa em uma
faculdade em Belo Horizonte. Fiz uma fala e, em seguida, os alunos, a partir da
leitura de um semestre, teceram comentários, encenaram algumas das histórias e
ainda me entregaram pequenas cartas escritas sob o impacto da leitura. Um troço
lindo.
Um dia antes, havia ido ao cinema com uma de minhas irmãs.
Na saída, tomamos um café ali mesmo, no saguão. Na mesa ao lado, duas mulheres conversavam,
e certa hora jurei ter ouvido meu nome. Ficou por isso mesmo, já que elas não
me reconheceram (porque não me conheciam) nem fui até elas saber se ouvira bem.
O evento ao qual eu iria fora organizado pela professora
Marisa Fortes Ribeiro, amiga e colega de trabalho de minha outra irmã, com quem
comentei sobre a impressão de ter ouvido meu nome. Num mundo sem internet,
apenas no outro dia fui ter a confirmação de que, sim, falaram de mim. Quem
estava no café era outra do trabalho, e ela comentara com sua companhia sobre a
ida do irmão-escritor da colega a BH. Uma conversa trivial, acrescida de certa
curiosidade sobre a figura dos escritores.
Li "A dor fantasma", de Rafael Gallo, livro
bastante premiado. O personagem central, um pianista cuja carreira é cortada
por conta de um acidente, é um sujeito egoísta, um pouco ridículo e de fato
doentio – narcisismo patológico, segundo minha amiga Vânia Osório. Terminada a
leitura, parti para outra, um romance de Simenon, "O burgomestre de
Furnes".
Há muito tempo, ganhei – do saudoso Horácio, fã do escritor
– dois livros de Simenon, o criador do comissário Maigret. Li um deles, uma das
histórias protagonizadas pelo inspetor, e supus que o burgomestre também o fosse,
mas não, ele é de uma outra categoria explorada pelo profícuo escritor belga, a
do romance psicológico, se é que pode ser chamado assim.
Simenon, do mesmo modo que Gallo, coloca em cena um egoísta terrível,
com o agravante de o seu prefeito ser poderoso, ao contrário do pianista do
brasileiro. Ambos têm filhos com problemas mentais (a filha do burgomestre em
grau maior que o filho do pianista). Ambos têm uma mulher com a qual a
convivência é praticamente destituída de afeto (mais no caso de Gallo do que no
de Simenon, ainda que este seja mais abusivo que o outro). O burgomestre tem
mais nuanças que o pianista, é menos linear, mas considerações como essa fogem
ao meu objetivo, que é apontar a coincidência entre os romances distantes no
tempo em mais de oitenta anos (o de Simenon de 1939, o de Gallo de 2023) e o
fato de eu, sem saber disso, lê-los em sequência.
Saquei da pilha que fica na mesinha de cabeceira uma coletânea
com quarenta e sete contos de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio. No
prefácio, Antonio Muñoz Molina diz: "Onetti, leitor fervoroso dos romances
do comissário Maigret, conhece como ninguém um recurso admirável de Simenon, o
das repetições de hábitos, lugares e gestos". Por encontrar os mesmos artifícios
nos contos de Onetti, a literatura do uruguaio se avizinharia da de Simenon.
Fecha-se assim um ciclo de
coincidências. Coincidência verdadeira, raiz – manipulação do acaso em nossa
vida –, e não a forjada pelas mãos maliciosas que vêm dominando o mundo de uma
forma nunca vista, o tal algoritmo.
3 comentários:
Excelente texto, caro Alexandre! Parabéns!
Obrigado pela visita, Zé.
Mto bom ..Coincidências, para mtos , não existem..
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