21.9.24

A porta

 

Logo de manhã, um amigo me envia o link de uma matéria em jornal que não assino, portanto, não consigo ler. Acesso a manchete: uma carioca foi eleita Miss Vagina. Soube ainda que foi o segundo ano do concurso e que as pretendentes se inscrevem diretamente.

No mundo que exalta a simetria, lábios vigorosos, de coloração suave e encerrados em um desenho harmonioso devem ser os aspectos apreciados. Isso se um discípulo de Picasso – e aqui não há segundas intenções de um menino da quinta série – não pertencer ao júri. Os cubistas, sabemos todos, veem beleza na assimetria.

A existência de uma disputa assim abre a possibilidade para que também entrem em concorrência o pênis, o dedinho do pé esquerdo, a nuca, o M da mão. Não a bunda, que tem seus milhares de concursos diários, oficiais, oficiosos ou frutos de solitárias fantasias. Muito menos a bunda da mulher farta de tanta objetificação. Hoje, não somos nós que desejamos a bunda da Anita, é a bunda da Anita que nos deseja (ou não). A bunda tem poder. Talvez, por isso, se busque, em concursos nos quais a candidata se aceita como puro objeto, carne fatiada sobre a mesa – comum ou ginecológica? –, a beleza oculta e menos óbvia.

A medida perfeita sempre foi um requisito perseguido nos concursos de misses. Aliás, isso marcou essas disputas no Brasil, já que nossa primeira Miss Brasil, eleita em 1954, a baiana Marta Rocha, teria perdido o título de Miss Universo por duas polegadas a mais no quadril. Ao que parece, tudo não passou de uma invenção de um jornalista, e o motivo da derrota seria outro. Seja como for, nas competições tradicionais, é valorizada também a vida social da candidata, com especial atenção ao modo como se distrai. Todas leem “O Pequeno Príncipe”, então, pesa na avaliação se o leem deitadas, sentadas, em pé; se atentas apenas ao texto ou, ao contrário, só às ilustrações; se leem tudo ou saltam páginas. Enfim, a beleza é um dos pontos observados. Já à Miss Vagina não se pergunta nada. Imagino que nem o rosto se revele, pois conhecê-lo adulteraria o espírito julgador ou o faro de quem julga. O faro seria outro fator a perturbar a neutralidade, logo é melhor desconsiderá-lo até em seu uso figurado.

Com o avanço da tecnologia, antevejo prêmios para os órgãos internos. Teremos em breve a Miss Fígado ou o Mister Rim, a Miss Intestino ou o Mister Baço, além dos genericamente exclusivos Miss Ovário e Mister Próstata. As possibilidades são inúmeras. Carótidas, corram à academia, malhem o bíceps, estejam prontas.

Esta crônica passeia entre a falta de noção e o devaneio, com pretensa e destemperada ironia. Tento corrigi-la conjecturando o real significado de um concurso como esse vencido pela carioca. Podemos pensar em narcisismo exagerado, ou, como já disse, em sujeição máxima a um machismo ultrapassado. Mas também pode ser que, à moda de um personagem bukowskiniano, só queiramos voltar ao útero, à origem, abandonar essa vida cheia de boletos, guerras, desastres ecológicos e luz, excessiva luz. Como nos conforta a beleza, estamos à procura da porta mais atraente para esse retorno. Se é assim, fiat tenebrae.

 











5 comentários:

pausado tempo disse...

Amei

Rejane disse...

Arrasou, Alexandre! Incrédula, fui ao Google pesquisar sobre o concurso. E não é que existe mesmo?!

Marilena Moraes disse...

A imaginação ilimitada do autor escancara o mundo das harmonizacoes possíveis, os patrocinadores...e troféus.

etc etc


mo

Unknown disse...

Harmonização labial!!!

No Osso disse...

Olá, pessoal, obrigado pela visita. Fico feliz por terem gostado. Voltem sempre.