Instigante sempre foi. Falo da obra de João Gilberto Noll, que agora ganha mais um livro, “A máquina de ser” (Nova Fronteira), reunindo uma série de pequenos contos. Se, em número, o grosso de seu trabalho são os romances, os contos costumam chamar bastante a atenção, não sendo raro encontrar aqueles que os consideram como a melhor parte da criação do escritor gaúcho. Também dizem isso em relação a Clarice Lispector. Não quero entrar no mérito da questão, mas acho que esse é o tipo de debate estéril. Noll e Lispector escrevem bem às pampas e o pior deles tira o fôlego de qualquer um (fazer perder ou não fazer perder o fôlego é a melhor maneira de medir a qualidade da literatura).
Debates à parte, concentro-me nessa tal máquina de ser do Senhor Noll. O título abre dois caminhos claros para associações rápidas: a contemporaneidade (máquina) e a filosofia ou a perenidade (ser). E é bem no interstício entre essas duas forças que Noll, habitualmente e não só neste livro, trafega. Poucos são os autores capazes de cutucar com vara curta a ferocidade de nosso dia-a-dia, no qual, não por acaso, o corpo furioso se apresenta como espaço sintético de todo o resto.
Nos contos da “Máquina”, o corpo é a estrela, também o breu, o que pouco importa, desde que céu e inferno sejam entendidos como foco urgente e principal de Noll. E são. Não só neste livro, em todo o Noll, em contos e romances, de cabo a rabo, dos pés à cabeça, o corpo serve de palco a suas fabulações.
Entre este livro e os romances, há uma diferença fundamental: Noll trancafiou seus personagens no ambiente de suas casas, como o fizera em sua estréia em contos, “O Cego e a Dançarina”. Não vamos encontrar mais o sujeito que permanentemente está mudando de ares, indo de Copacabana para Santo Cristo e, num átimo, rumando para o Leblon, quem sabe descansando no Rocha ou se perdendo num país inexistente; voando de Londres para Porto Alegre, vagueando, antes, pela Lagoa da Conceição. Os personagens do Senhor Noll sempre precisaram de campos abertos e de longas caminhadas, riscando uma metáfora de liberdade na prisão pessoal, intrínseca, não há como não bisar, corpórea.
Eis que, na “Máquina”, o ir-e-vir se reduz a um quase nada, tudo está ali intramuros. Mesmo quando um helicóptero aparece para levar o pouco que resta de um tal personagem para o mais distante possível, para a geografia sem fronteiras do céu, não logrará sucesso. Sim, sim, se o céu é o paraíso religioso, a afirmação anterior não se sustenta, mas se não é, e para Noll não é, o resultado final será um aglomerado de carne e ossos esboroado no chão, instante em que perderá pelos pólos a liquidez das idéias e ganhará, tarde demais, a dimensão do imensurável.
O ilimitado, a partir do novo livro, perde o significado até então concebido a ele, o de metáfora da recusa do que está posto pelas regras da convivência. A mesma recusa continua quando o espaço se reduz ao mínimo possível. Em Noll, nunca houve sinal de agorafobia, nem há, em sua última tacada, sinal de claustrofobia. Em campo aberto, em quarto fechado, o corpo corre sozinho os riscos inerentes à condição humana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário