Depois de dias de muita chuva, vieram outros de plena
estiagem. O calor voltou a pino, e a estrada levantava poeira à toa. Uma poeira
fina, é verdade, mas, como eu suava, a camada de pó grudava na pele sem
piedade. Meu cabelo ia pouco a pouco ficando nojento, duro. Quando voltasse
para casa, mesmo tendo passado dias fora e tendo tomado regularmente o banho,
minha mãe, sempre ambígua, murmuraria: — Nossa!
Lá ia eu pensando na volta mal a jardineira apontava para a
subida que desemboca no seu Tuca. A estrada da Julieira terá uns 40 quilômetros
de cabo a rabo, não sei, e não cortáramos mais do que um décimo de toda a
distância, muito pouco até mesmo para o meu destino e o de meu padrinho, a
Fazenda do Gordurinha, a 20 quilômetros de Passos. Pensava na volta porque
sempre pensamos na volta — como uma espécie de lembrança de segurança, que não
nos deixa perder do mundo e pelo mundo. Mas eu tinha, meu Deus, alguma coisa
entre oito e dez anos e nenhuma noção de que somos cheios de escapes,
subterfúgios. Eu pensava na volta e daí a pouco não pensava mais — só isso.
Sonhava então com pomar, com bica de água fria, com a aventura de ter de ir
cagar no mato. Planejava andar no Segredo, cavalo grande e manso. E tinha
certeza de que meu padrinho, ali do meu lado, batendo seus dedos no apoio de
braço do banco, olhando tudo e todos, me deixaria fazer aquilo que me desse na
veneta: comer pão de queijo antes do almoço, não almoçar, chupar a fruta que
estivesse no galho mais alto da árvore.
Jardineira fashion. Foto própria. |
Dentro do ônibus, eu viajava no espaço, rumo à fazenda. E, de
pensamento em pensamento, roçava distraído o beco inominável. Insisto: tendo
aqueles oito, dez anos, não podia imaginar que existisse, dentro da gente, um
oco, buraco negro que engole nossas brandas certezas.
Tendo passado outros dez anos, ia eu de novo dentro de um
ônibus velho. Agora a estrada, embora poeirenta, era outra, e a distância,
maior. Cruzava a Bolívia, desde Santa Cruz de La Sierra até Cochabamba e de
Cochabamba até nem sei onde e de aí, por fim, até La Paz. Meu padrinho não ia comigo,
dessa vez minha companhia era o Carlos, amigo chileno que cometeria o desplante
de morrer com pouco mais de 40 anos. Apesar de meus 20 anos de então e de viver
sempre um pouco bêbado e de mascar as folhas de coca que me ofereciam e de ter
deixado um amor no Brasil e de estar lendo com indomada fúria (Cem anos de
solidão – Gabriel Garcia Marques, Editora Record) e de ter medo do desconhecido
que estava por vir e de ouvir música em um toca-fitas que era uma verdadeira
geringonça; apesar de tudo, já tocara com as próprias mãos aquele oco
imponderável. Aprendera que ele é feito de pau e luz, de ferro e brasa, de
barro e sombra.
Uma jardineira na Guatemala. Foto própria. |
Os motoristas desses ônibus são gente muito qualificada. O
menino que tinha o cabelo cortado a mando da dona França (nuca quadrada) via,
com encantamento, o homem que vinha muito sério lá na frente de repente subir na
capota da jardineira e ir direto e reto na mala da senhora que desceria ali nos
Meireles.
O universitário em férias sentia frio quando, no meio da
madrugada, o motorista viu-se obrigado a parar o ônibus, que rateava havia
algum tempo. Tendo pegado uma lanterna muito mixuruca e enchido a mão de
ferramentas, ele desceu à estrada, esticou um forro de papelão no chão frio, deitou-se
sob o chassi e começou a fuçar para ajeitar aquilo e poder dar prosseguimento à
viagem. Havia crianças espalhadas pelo corredor do carro; Carlos dormia,
tombado pelo excesso de chicha; o velho ao meu lado, meu fornecedor de folhas
de coca que me caíam bem pra diabo, tinha uma única preocupação: manter viva a
galinha sob sua jaqueta esfarrapada.
Foi na noite boliviana, onde brinca o sono dos lhamas, que escrevi, sem lápis e sem papel, um livro esquecido logo depois.
(Esta crônica foi publicada, aqui mesmo, em 10/09/2005, sob o título de Dentro das Viagens.)
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