Lendo o artigo de Francisco Goldman
(publicado originalmente na revista “The New Yorker” e reproduzido na Piauí de maio), Filhos da guerra suja, duas
questões brotaram dele.
A primeira tem a ver com a perversão.
Tenho tendência a pensar na perversão como uma questão de foro íntimo. Desvio
que acontece na relação entre homem e mulher, adulto e criança, mas, claro, há
a perversão comandada pelo Estado, sempre houve, talvez haja sempre. Cito
Herodes, que, para liquidar um futuro homem, mandou exterminar todas as
crianças de até dois anos de idade. Cito também Hitler, disposto a fazer uma
limpeza racial. Perversos ambos. Mas também a ditadura argentina mais recente
foi perversa, possivelmente a mais perversa de todas, haja vista que não planejou
o extermínio das crianças, mas o sequestro delas. Arrancadas das famílias
transgressoras da ordem, seriam educadas num ambiente de pureza ideológica.
O artigo, na realidade, usa essa
questão como pano de fundo, pois o que está em jogo é a suposta origem dos
filhos adotados da mandatária do Clarín, jornal importante, verdadeiro império
da informação nas terras de Maradona e do tango. Depois de idas e vindas, sobre
as quais falarei em seguida, a situação atual é que não há evidência de que o
casal de jovens adotados pela senhora tenha origem em famílias que contestavam
a ditadura. Todavia, não se esgotaram todas as possibilidades de pesquisa.
Foto publicada em El Pais. |
Pois bem, as tais idas e vindas lançam
luz sobre a questão da verdade. O Clarín é um jornal poderoso, digamos assim.
Pertence à tal grande imprensa, essa sobre a qual sempre há suspeita de
locupletação com o poder. É uma discussão infindável essa da ligação entre
imprensa e poder, foge ao escopo dessa crônica, mas acho que a concorrência (o
fato de existirem vários grupos) diminui a chance de uma aliança maliciosa
entre essas duas instituições da democracia.
Volto ao caso argentino, baseando-me
no artigo do senhor Francisco Goldman. Enquanto o casal Kirchner (no poder
desde 2003) manteve boas relações com o grupo Clarín, a questão da adoção
irregular dos filhos da proprietária não emergiu, ou não passou de assunto que
correu à franja da profusão de fatos ligados ao sequestro de crianças na
Argentina. No entanto, quando a presidência e o grupo jornalístico passaram a estar
em lados opostos, surgiram as leis que de certa forma obrigaram o uso do DNA
para confirmar a origem dos adotados. Os filhos da senhora do Clarín, em nome
da lei, sofreram uma série de constrangimentos, que também souberam contornar
de forma burlesca. Leiam o artigo, vale a pena.
Enfim, tudo isso para dizer que a
verdade é uma construção. A turma lá de cima faz das tripas coração para que o
fato em si seja a versão dele. Estamos vivendo, no Brasil,
momentos decisivos ligados ao “mensalão”. Claro, há um jogo de interesse
tremendo na questão. O episódio, ainda mal contado (pelo menos sem uma versão
definitiva), do encontro entre Lula, Gilmar Mendes e Nelson Jobim é apenas uma
onda pequena que pode estar anunciando um tsunami.
Espero uma imprensa comprometida com a verdade.
Com a verdade dos fatos. Sem perversão.
Um comentário:
Primo, bastante interessante..., sua escrita sempre nos convida à uma reflexão. Desde que o mundo é mundo (rs...rs...) os "interesses" representam o combustível para a propulsão das relações humanas... Complicado, né... Assisti um filme recentemente: "O dia em que eu não nasci (Das lied in mir) de Florian Micoud Cossen, uma produção "germano-portenha" que mostra isso. Beijão no coração. Agradeçamos a Deus por nossas vidas abençoadas. FB
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