Não sei quem e quantos conhecem a expressão “dar uma rata”.
Significa cometer uma gafe, dar uma mancada. O sujeito que dá ratas é o
sem-noção, o mané, não sei mais quais adjetivos aproximam a expressão tirada do
fundo do baú de outras hoje em
voga. Pouco importa, não estou aqui para platitudes
vocabulares e sim para destrinchar a rata com um pingo de didática; e só.
A rata pode ser da alçada íntima, por exemplo, alguma
estranheza que, sem saber, um ou outro do casal recém-formado deixa escapar durante
o sono: uma frase enigmática balbuciada entre dentes; uma virada de lado com
energia descabida e distribuição de socos ao deus-dará. Ratas íntimas e
inconscientes são para deleite e análise de Freud, não para o meu. As
conscientes, ou pelo menos aquelas que encontram os namorados acordados,
interessam mais ao meu rascunho didático. Um segredo revelado numa mesa entre
amigos ou uma reclamação do caráter do parceiro na casa dos sogros são ratas
típicas. E doloridas. Quem viveu, sabe; quem não, esteja preparado, acontece
com alguma frequência.
Pode-se definir a rata coletiva, cometida por um
amigo e absorvida pelos demais. Quando adolescente — na realidade, pré-adolescente,
ali com uns doze anos —, o Mosquito (que foi feito dele?) foi operado de fimose,
e uma amiga não sabia que diabo era isso. Num tempo em que sentíamos vergonha
de fazer comentários sobre aquela região do corpo que até nossos pais não
costumavam nomear, não encontrávamos palavras para tirar a inusitada dúvida. Apostamos
na generalidade: tratava-se de uma cirurgia feita com o propósito de não inibir
o crescimento. Não dissemos do quê, mas, se bem me lembro, fizemos um gesto. A
amiga, incapaz de perceber a sutileza de nossa comunicação e sabendo, como
todos sabíamos, que o Mosquito não era um menino alto, diagnosticou que ela
também deveria render-se ao bisturi, pois era baixinha além da conta. A rata
dela virou folclore entre nós, mais que isso: tornou-se nosso patrimônio
coletivo. Sempre que nos encontramos, relembramos o bafo. Para quem chegou
depois, maridos e mulheres que não pertenciam ao grupo, rata, rata mesmo, é
contar e recontar coisa tão desimportante — e sem graça. Essas ratas fraternas,
na prática, alinhavam e sustentam as relações duradouras. É a rata mosqueteira:
uma por todos, todos por uma.
Nas barbas da diplomacia, prolifera a rata
internacional. Não pode ser confundida com atrocidades do tipo invadir países
ou promover golpes de estado. A rata internacional é o rei da Espanha mandando
Hugo Chávez calar a boca. Ou Reagan dizendo que Buenos Aires é a capital do
Brasil. É coisa mais jocosa que grave, mas, nem por isso, isenta de danos. A
Guerra de Troia começou com uma rata: entre todos os deuses, a deusa da
discórdia, Éris, foi a única não convidada para o casamento de Peleu e Tétis (que
viriam a ser os pais de Aquiles). Ora, não deu outra: a deusa, vingativa e
manipuladora, fez e aconteceu, jogando, ainda que de forma indireta, Paris nos
braços de Helena, a esposa de Menelau. Daí em diante foi o que foi; se é que
foi.
Haverá — é lógico, mas não se prova — a rata intergaláctica. Vai que a noite e o dia (resultado de uma complexa engrenagem), do ponto de vista de galáxia distinta da nossa, não passem de um tropeço risível do sistema solar. Ou que um cometa, que só de rai e rui corre visível a olho nu pelo céu, equivalha a um pum impertinente, que escapa no meio de uma reunião de negócios. A ideia de rata nesse nível não parece desajuizada, embora poucos se preocupem com ela, talvez nem mesmo, ou muito menos, a própria cosmologia.
Deus comete ratas. Os muito céticos afirmam que o
homem e a mulher foram um erro divino. Não vou discutir essa questão delicada, que
julga o ato divino, que o considera errado. Não vou por aí, meu foco é a rata,
coisa miúda. E a rata de Deus foi dar próstata ao homem e marcar o ciclo da
mulher com a menstruação. Havia soluções de engenharia ou arquitetura mais
eficazes.
2 comentários:
Minhas avós, em 1900 e estilingadas, também usavam muito essa expressão, Mestre! No sentido de gafe, mico, claro. Na zona de Passos rata tb era sinônimo de cona, sabia? Cona? Vulva,órgão genital feminino que o Mário de Andrade tb traduziu macunaimicamente para renkuen... Adorei o texto! Abs. Barreto
Mano Barreto, essa sua cultura de terceira chapada é o must. Fez a rata perder sua conotação pejorativa para ganhar uma celestial.
Brigadim pela visita, volte sempre.
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