Às vezes faço uma fezinha. Os jogos de loteria são, a meu ver, o jeito difícil mais fácil de ganhar dinheiro. Sem derramar uma gota de suor, marca-se um número aqui e outro ali e, depois, entrega-se a sorte a Deus ou, acreditando-se na lisura dos homens, à máquina. Quem vai botar dificuldade nessa mecânica? Ninguém. Daí a ganhar, já é outra história.
Mas não era sobre o jogo que eu gostaria de falar, é sobre a experiência de hoje; que, esclareço, tampouco é sobre a experiência de jogar. O que tenho para contar tem a ver com o ambiente da loteria em que entrei. Primeiro, havia uma senhora que, revirando sua bolsa grande, descobriu-se sem a bolsa pequena, uma que ela havia mexido um pouco antes e onde guardava o dinheiro miúdo. Alardeou aos quatro ventos a perda, olhou para cada um de nós de cima a baixo, com desconfiança. Os menos vulneráveis a olhares acusatórios deram conselhos à senhora, que ligou para um lugar em que esteve, saiu e voltou para a fila até levantar a hipótese de ter sofrido um furto antes, talvez na rua. Mesmo assim, incontrolável e inocente, não escondeu de ninguém que ainda carregava na bolsa grande quatrocentos reais em notas de cem.
Isso não foi nada diante do sujeito que furou a fila e abordou a atendente de um modo que, segundo ele, quando passou a se defender, era leve, brincalhão. Não foi interpretado assim por ninguém, muito menos pela moça do caixa. O filho desse homem havia estado ali um pouco antes para pagar uma conta. Correu tudo bem no que diz respeito ao pagamento, mas o reclamante viu que, por erro próprio, a conta paga era outra, uma que não pretendia quitar. Cheio de empáfia, exigia um estorno. As moças da loteria, reagindo à antipatia com dose similar de antipatia, negaram que pudessem fazer alguma coisa, o sistema não permitia. Ele saiu de lá cuspindo ameaças.
Depois do dentista, fui comprar tinta para impressora e, na sequência, tomar um café. A loteria era bem em frente, não resisti. Fui jogar, tão somente isso, e saí impregnado daquela tremenda confusão. Só pensei numa maneira de me livrar do baixo astral: me meter no metrô e voltar para casa.
Entre o metrô e o prédio onde moro, um muro está pichado com a seguinte frase: “Por onde anda a empatia?”. Há um complemento, um gracejo que remete a favores sexuais, mas, no que pensei depois, não me importei com ele. Pelo caminho, fui martelando sobre a empatia em estado puro e concluí que ela foi sequestrada dos nossos dias. Restou-nos a repulsa, ou algo mais radical. Nada que fuja do que professamos ou gostamos nos atrai. Somos o avestruz da vez, com a cara enterrada no espelho.
Tenho uma vizinha de mais de 100 anos de idade. Não é raro encontrá-la sentada no pequeno jardim ou embaixo da marquise da portaria. Calada, olha tudo. Um dos seus gestos habituais é, certeira, pegar a mão de quem passa por perto e dar um, dois ou três beijos nela. Ganhei esses beijos ao chegar a minha casa e imediatamente desenhei uma utopia: as pessoas passariam a pegar as outras pela mão e, em seguida, depositariam ali um beijo. Não aquele de quem toma, por obrigação, a bênção dos pais, dos tios, dos avós, e sim aquele de quem agradece ao outro por ser justamente o outro.
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