para Viveca e Boinha
Aos 18 anos, eu, amigo da noite e de seus maus conselhos,
voltava para casa quando os miseravelmente responsáveis (mal sabia que seria um
deles em futuro próximo), já acordados, preparavam-se para o trabalho. Foi
nessa época que, tendo ficado viúva, tia Yole me escolheu para acompanhá-la nas
visitas que fazia à fazenda deixada pelo tio Elin.
Eu me recolhia às três ou quatro da manhã, às seis era
despertado, às seis e pouco minha tia e eu entrávamos no carro e fazíamos uma
pequena viagem de uns cinquenta quilômetros, de Passos a Cássia. Chegávamos ao
Morro Alto, que tinha apenas um curral, nada mais, descíamos e literalmente
olhávamos para o pasto e seus boizinhos. Era tudo. “Está tudo bem, não está,
querido?” “Sim, tia, está tudo ótimo.” Minha resposta tinha mais a ver com o
meu estado deplorável. Apesar de o bate-estaca da boate ainda ecoar pela cabeça
e de os infortúnios da ressaca já se prepararem para tomar conta da área, tudo
estava bem; ótimo era exagero.
Uma vez, fomos acompanhados por um primo meu (sem parentesco
com a tia), veterinário. Ele examinaria o Astuto, touro reprodutor — de má
fama, por ter um apetite sexual típico dos pandas — com o qual o tio Elin
planejara desenvolver o maior e mais bonito plantel do Sudoeste de Minas, mas
que, nas mãos de quem não tinha intimidade com a pecuária, acabou se
transformando num estorvo.
Durante a consulta, aproveitando um descuido da tia, meu
primo cochichou comigo que não voltaria com ela na direção (ele, de fato, foi o
motorista da volta). Puro machismo, claro, tia Yole dirigia bem, aliás dirigiu
até às vésperas de morrer, o que foi acontecer quando tinha quase noventa anos
(que ela não me ouça falar de sua idade, que, aliás, ganharia mais um ano no
próximo 20 de fevereiro), mais de trinta depois da história que conto. O que
talvez tenha assustado meu primo é que, alérgica ao sol, ela se protegia
segurando uma revista; quer dizer: dirigia com uma só das mãos.
Passada essa época, evoluímos de sobrinho e tia para
cúmplices: eu acobertei algumas de suas traquinagens, ela, muitas das minhas.
Para reforçar nossos vínculos, houve a escrita. Tia Yole escrevia com
sensibilidade, lindamente. Lembro-me da carta que me mandou quando a Helena
nasceu. E é inesquecível a crônica que dedicou a meu padrinho, um solteirão, um
joão-ninguém, um homem doce, qualidades que “Yoyó, a viúva louca”, como eu
carinhosamente a chamava, soube destacar.
Não vou dizer da beleza de minha tia. Não vou
dizer de como eram engraçadas suas histórias com o marido, cujo humor era a sua
forma de estar na droga deste mundo. Não vou dizer como ela era sofisticada.
Vou deixar apenas esse caso miúdo que vivemos juntos. Ah, e acrescentar que tia
Yole assobiava. Quem assobia, não sei se vocês sabem, perpetua sua passagem
pelo mundo.
6 comentários:
Alexandre, parabéns pela bela crônica e pela homenagem à sua tia!
Meu pai assoviava, absorto, debruçado sobre seus relógios... e eu, às vezes, me pego assustando as pessoas, assoviando inconscientemente pela rua.
Não sei se você sabe, mas quem escreve também perpetua a sua passagem e a passagem de quem assovia pelo mundo!
Meu querido amigo, seu comentário é dos mais bonitos que já passaram aqui por esse No Osso. Obrigado pela presença. E vamos assobiando um "nem ligo" pros infortúnios.
ô Alexandre
que doçura, meu. Ainda bem que não sou diabético.
e mesmo se fosse...
ah, eu me fartaria.
grande abraço duEustaquioGrilo
Eustáquio, querido, obrigado pela visita. E doce era a titia.
Crônica mais gostosa, amigo!!! Eu tenho mania de assobiar canções, coisa que meu pai, desafinado para cantar, fazia com muito talento ao substituir a voz pelo assobio, ou assovio. E hoje pouco se ouve alguém assobiando... Será por isso que já não conseguimos ser tão leves como antigamente?
Angela, com certeza é pela falta do assobio esse ambiente pesado, de sufoco, de desesperança.
Abraços e obrigado pela visita.
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