21.6.20

Boi

Para Joaquim, Antonio e João



Gado virou sinônimo de quem, regurgitando a escuridão, pasta a incivilidade espalhada pelo governo federal. Na famosa reunião do dia 22 de abril, aquela que escancarou o lado avesso do nosso país e mostrou que palavrões ainda são palavrões se ditos em discurso odiento, o ministro dos olhos verdes, comandante da pasta verde e inimigo do verde usou a metáfora “deixar a boiada passar” para alertar seus pares de que o momento de “distração” do povo com a pandemia deveria ser usado, ali, na moita, para acelerar as reformas polêmicas, como as que facilitam o desmatamento.


Eu, que não tenho gostado nada desse governo, que não gostei em nenhum momento e que agora — vendo a forma como não enfrenta o vírus — gosto menos ainda, sinto-me particularmente atingido pelo uso da imagem dos bois. Boi, vaca, touro, rês, bezerro, gir, guzerá, holandês, nelore, ¾, mestiço, enfim, a era, as raças, os cruzamentos e a aparência desses animais estão no substrato do meu afeto. Nasci num mundo bovino.


Meu pai era um vendedor de reses. Na juventude, isso é, nas décadas de 1930, 1940, ele organizava comitivas para a cavalo levar bois de Passos, onde vivia, até Uberaba, centro pecuário, cidades bem distantes uma da outra. Participava de uma realidade agora caduca, mas que, por exemplo, está nos romances de Mário Palmério e lindamente registrado e ilustrado em No longe dos Gerais (Cosac Naify), livro no qual Nelson Cruz conta da participação de Guimarães Rosa, durante o processo de escrita de Grande Sertão: Veredas, numa comitiva que tocava pelas bandas de Cordisburgo um rebanho de uma fazenda para outra.


Eu gostava de ouvir as histórias de papai. Na comitiva, eclética, cada um tinha sua função, e, ao longo do caminho, era preciso descansar e dar de comer à boiada. Arranchavam numa fazenda de conhecidos e, por conta disso, movimentavam o local, o que acabava em festa, com dança e namoros. Logo depois veio a fase de embarcar os animais num caminhão e não precisar mais fazer viagens desgastantes, montado em cavalo. Meu pai, em vez de se acomodar, inventou de, tendo a seu dispor rodas e velocidade, ir mais longe. Na década de 1960, levou uns boizinhos para o Pará. Não tenho ideia de quanto tempo levou a viagem, o que sei é de seu sumiço — por uns dois ou três meses pouco soubemos dele, nem por telefone era fácil de Minas contactar alguém tão longe. Na volta, nos trouxe guaraná em pó (ninguém gostou) e uma vitrolinha portátil; nos contou que tinha trocado bois por um carro e, em Goiás, vendido o carro. Por fim, falou que lá no Norte dormia-se em rede e que Belém era uma cidade cheia de mangueiras.


As viagens de papai movimentavam a casa. Ao longo do tempo, descobrimos que ele sempre saía numa quarta-feira. Era quinta-feira, ele anunciava a viagem para sexta, mas, era batata, ela não acontecia nem na sexta nem no sábado, só na outra quarta. Sempre às quartas. Imagino que isso tinha a ver com todo o preparo exigido: os relacionados ao embarque do gado (contratar o caminhão, acertar com o dono do gado o dia e a hora) e os da alçada da burocracia (as guias disso e daquilo). Cada uma das reses tinha de ter um nome registrado, então, nalgum dia, ele, mamãe, eu e meus irmãos sentávamos à mesa e passávamos horas inventando nome de reses. Ventania, Chalana, Enfezada, Fumaça...


Minha mãe, a bem da verdade, fez de tudo para que os quatro filhos não nos tornássemos negociantes. Em termos financeiros, nunca foi um empreendimento rentável, além de cobrar o sacrifício de se ausentar por períodos longos. Ela conseguiu, e todos fomos cursar a universidade.


Foi justamente Antônio — o filho mais velho e que, por ter se tornado um acadêmico com formação nos Estados Unidos, parecia o mais distante da vida rural — quem, quando pôde, comprou um pedacinho de terra e, durante anos, tratou de ter seu gado leiteiro. A existência da fazenda foi uma forma de todos nós nos aninharmos mais uma vez na roça. Apesar das diretrizes de mamãe, todos havíamos, desde muito cedo, desfrutado do Gordurinha, a fazenda da vovó Thomazia, e tínhamos intimidade com a pecuária.


Da fazenda de meu irmão, meus dois filhos mais velhos, em especial o primogênito, aproveitaram bastante. João cresceu ali e fez daquele mundo, estranho para um garoto de cidade grande, o seu mundo. Suas férias eram lá. Com menos de dez anos, ele acordava por volta das cinco da manhã e, sem pai nem mãe, sem tio nem avô, entrava no carro do retireiro e ia para a lida diária: ordenhar vacas, limpar estábulo, ajudar na inseminação artificial. Foi, e imagino que, se tiver oportunidade, voltará a ser, o mais vaqueiro dos descendentes do Joaquim. Não por acaso, ele e meu irmão mantêm até hoje uma cumplicidade de gente roceira; pena que papai acompanhou pouco a camaradagem dos dois.


Enfim, acho que me sobram motivos para salvar o gado, quer dizer, para dar às palavras gado, boi, vaca, rês, bezerro significado oxigenado, positivo e democrático. Chamemos ao séquito do senhor da escuridão de obtuso, lorpa, ignorante, tapado...  





























11 comentários:

Unknown disse...

Nossa, que crônica deliciosa.Torci pra não acabar. Por um momento,feliz de novo nessas horas de agudas tristezas pessoais.

Unknown disse...

Nossa, que crônica deliciosa.Torci pra não acabar. Por um momento,feliz de novo nessas horas de agudas tristezas pessoais.

Ronaldo Guimarães

No Osso disse...

Fala, Ronaldo. Crônica de um ser bovino. Muuuuu. Abração e obrigado pela visita.

Dagmar Braga disse...

Que delícia de texto! Voltei no tempo e revi os tropeiros tocando o gado e atravessando a cidade. Revi as fazendas que visitávamos - café com broa, uma pinguinha pra limpar a garganta, no meio do proseado - e os bois e vacas, alheios a tudo, iam, devagarzinho, triturando o capim e as nossas mágoas.

Dagmar Braga

Alexandre Marino disse...

Xará, que emocionante. Amei a crônica. Talvez porque eu, embora tenha crescido numa família um pouquinho mais urbana, também sou, no fundo, bovino. Por isso gosto de ruminar e passar horas olhando as lonjuras. Um dia eu volto pro campo, não pra transportar bois, mas pra simplesmente olhá-los. E você vai lá me visitar.

Dag Bandeira disse...

Que delícia de crônica. Também tenho a minha história de infância ligada à roça. Do tempo em que Rio Bonito (RJ) era cheio de fazendas. A vovó Tutucha era dona de não sei quantas cabeça de gado. E ver moer a cana numa moenda puxada por cavalos e depois ver fazer melado com aquele caldo. Sentar à mesona de madeira, na cozinha,e com os primos comer melado com farinha de mesa.Quanto aos senhores que lideram, no momento, a nação, só desejo que eles sejam capazes de se contagiar com a essência desses animais, pacatos, cordatos e tão lindos.

No Osso disse...

Duas Dagmares e um Alexandre, obrigado pela visita. Contra a barbárie atual, esse mergulho na memória. Memória de um mundo rural que, vejo, vocês também compartilham.

Aroeira disse...

que texto ótimo.
ABs.

No Osso disse...

Valeu, Aroeira.

Nilma Lacerda disse...

Belíssimo, Alexandre. Além desse desfrute, tive outro, fundamental. Agora sei de onde vêm os seus títulos. Você entregou, meu amigo: "Cada uma das reses tinha de ter um nome registrado, então, nalgum dia, ele, mamãe, eu e meus irmãos sentávamos à mesa e passávamos horas inventando nome de reses. Ventania, Chalana, Enfezada, Fumaça..."
Veja só: o Méier fica em Minas Gerais, logali, em Passos. Honra e glória!

No Osso disse...

Nilma, me entreguei. Um pequeno descuido e a gente se vê revelado. Adeus, Méier!