24.10.20

O breve Narciso

 

“Há um menino / há um moleque / morando sempre no meu coração / toda vez que o adulto balança / ele vem pra me dar a mão” (Milton Nascimento e Fernando Brant)


Minha primeira namorada... ih, agora tive dúvida se foi uma ou outra. Pelo espaço onde se davam nossos encontros — eu morava na rua do Ouro, em Passos —, era a Sá Chica, a cozinheira da casa. Se havia ali o elemento tão horroroso do patrão seduzindo a empregada, o branco, a negra, em minha defesa digo que eu não tinha cinco anos e Sá Chica tinha a sabedoria de quem caminhava pelos sessenta; e mais: foi a única vez que algo semelhante aconteceu comigo. Nosso namoro consistia em eu passar, no meu tratorzinho amarelo todo incrementado, pela porta da cozinha e convidá-la para um passeio. Ela me dizia algo como “mais tarde você me leva para casa”. Isso era tudo. Isso era recorrente.

A segunda poderia muito bem levar a uma tragédia de teatro grego ou de Shakespeare. Meu amor havia sido, se ainda não era, namorada de meu irmão. Vejam o perigo. Nesse namoro, eu nunca fazia a corte, não a convidava para passear no meu calhambeque, nada disso, eu simplesmente a contemplava; ela era minha professora de pré-primário. Meu padrinho chamava, não sei por que razão, a situação em que a pessoa amada ignora que é amada de namoro ou amor de traição, o que não era o caso. Minha professora soube, assim suspeito, pela voz do enciumado irmão ou das descuidadas irmãs, e nem por isso retaliou meu amor, ainda que não o tenha alimentado. Continuou me tratando bem e distribuindo pela sala seu sorriso, que devia ser mesmo o que muniu minha paixão, já que, se fecho os olhos, ainda o vejo.

Naquela época, eu era muito bonito, assim concluo, pois, às vezes, em sala de aula, minhas colegas corriam atrás de mim. Bem, sei lá se isso não é dessas memórias inventadas para falsear a dura realidade ou para nos proteger do primeiro pé na bunda, pouco importa, eu era bonito, e, se a professora não correspondia ao meu amor, minhas colegas se derretiam por mim.

De todo jeito, há um fundo de verdade, não na minha beleza, mas nisso de agradar as colegas. Uma delas, que se mudou de Passos logo depois dessa época — eu nunca mais a vi e soube recentemente que é médica em São Paulo —, ao ganhar um irmão, pediu aos pais que o batizassem com meu nome. A sugestão foi aceita. Nesse caso, creio, para ter uma vida completa eu não precisaria plantar uma árvore, escrever um livro e ser pai, o que eu fiz e sou — no caso dos livros, tenho feito ainda, e no das árvores, quero voltar a fazer —, bastava alimentar o orgulho de saber que, dando meu nome a um pobre inocente, fui homenageado. Vá lá que eu não era bonito, mas tinha um borogodó.

Os meus leitores habituais talvez tenham percebido ao longo do tempo, e, aos que estão chegando, esclareço: não, não sou esse que agora se apresenta, um ególatra alfa encantado diante de um espelho. Hoje, estou tomado pelo menino que fui, aquele ingênuo, Narciso de voo breve, um tipo básico. Aqui quem escreve não sou eu, é ele. E ele escreve como se pingasse sobre mim a última gota da chuva que prepara o amanhã.



6 comentários:

Ricardo - Cueca disse...

(...)"Naquela época, eu era muito bonito...
Xandão, realmente você é um amigo que ainda tem um certo "borogodó"...rsrsrs.
Abração do Cueca.

Patrícia Pessôa disse...

Nossa, como me lembro desse tratorzinho amarelo. E que saudades da Sá Chica, que era bem bravinha comigo. Porque será,né? E bonito vc. continua até hoje....

Unknown disse...

Eita crônica bonita igual o dono dela.Bacana demais, irmão.Ronaldo Guimarães

No Osso disse...

Cueca, você é prova de que não estou mentindo, mas você tá exagerando que ainda tenho um borogodó... Paçoca, Sá Chica era brava com todo mundo, e a Neide, filha dela, não dava um sorriso. Grande Ronaldo, abração bonito pr'ocê.

Branca Maria de Paula disse...

Concordo, Patrícia. Ele continua bonito (imagino o menino). E infância nunca termina, para nossa sorte. Beijocas, amigos.

Branca Maria de Paula

No Osso disse...

Branca, eu agradeço o seu olhar e o da Patrícia, acho mesmo que o mundo precisa de mais gente assim. E por favor, nada de mudar de oftalmologista.