Enquanto passava os olhos na lista dos livros que li de março até agora, período de total confinamento, a lembrança e o esquecimento começaram a briguinha corriqueira. Resignado súdito do esquecimento, desconfio de quando a lembrança levanta a voz cheia de si e, então, para evitar virar joguete na mão dos dois, me concentrei na lista pensando no que fiz de todos aqueles livros. E é disso que falo nesta e nas próximas duas crônicas.
O espanto ao ler “Pinóquio”, de Carlos Collodi (Cosacnaify), veio do equívoco de reduzir a história do boneco ao crescimento de seu nariz depois de contar uma mentira. A leitura atual mostrou que essa é a menor questão, Pinóquio nem passa por aquela situação tantas vezes. A história, pra lá de violenta, expressa, na verdade, a forma como somos modelados para servir a um sistema hostil, e Pinóquio só ganha corpo humano quando aceita ser parte daquela engrenagem. Esse entendimento do clássico italiano foi parar em uma personagem de um conto que escrevi; rascunhei, melhor dizendo. É uma jovem que vai viver na rua e, depois que seu pai morre e os irmãos somem no mundo, volta a viver com a mãe. Pinóquio é o que ela não quer ser. E não será.
Num outro conto, o narrador vê na frase “se é para ser, é, e não tem qual é”, pensada pelo menino protagonista, um Hamlet deslocado do Reino Unido para a Maré. Penso que o narrador se referia a “ser ou não ser, eis a questão”, e não seria por um desvario desses que eu enfrentaria a peça de Shakespeare. Decidi por sua leitura quando, ainda no conto, uma senhora, ao proteger o menino que fugia de tiros da polícia, diz outra frase, que, na minha intuição (e não na do narrador), era puro Shakespeare, novamente “Hamlet”. Li o livro para concluir que não, o bardo inglês passava longe dali. A leitura de um livro por conta de uma frase lançada numa história, assim é, às vezes, a vida de um escritor.
As leituras serviram também para ver do que tem falado a literatura brasileira. Ronaldo Guimarães, em “Barbárie em cena” (Miguilim), escreve, como o título sugere, um texto teatral, ainda que não na forma, ao narrar a internação de quatro pessoas de nenhum modo loucas no famoso hospital de Barbacena. O manicômio da cidade mineira, mesmo fechado, continua uma ferida exposta, e Ronaldo, límpido e “leve”, nos ajuda a não nos esquecermos disso. Ádlei Carvalho (“As nove páginas de Alberto Silva”, Coralina) e Claudia Lage (“O corpo interminável”, Record) usam a ditadura como pano de fundo. Ádlei, baseado em um trabalho de pesquisa cuidadoso, conta uma história de amor entre uma mulher de família crítica ao golpe e um soldado do exército vítima da estupidez do regime. Um casal de jovens, no livro de Claudia, busca a história de suas famílias — em uma de suas linhas, o livro lida com os limites da escrita. O corpo interminável começa lá, torturado por aqueles que nosso país mal resolvido ainda aceita como dignos de vivas, e continua, no presente, no homem, na mulher, no filho a caminho. A dor é uma herança corpórea.
No livro de Claudia desponta também a questão feminina, pois quem sumiu nos porões da ditadura foi uma mulher, uma guerrilheira. Branca Maria de Paula, em “Nanocontos” (Quixote +Do Editoras Associadas), como tem sido sua literatura, acompanha a mulher em casa, na rua, no amor, no abandono. O texto miúdo (de onde o nano) é uma tarefa de difícil execução, e Branca faz bonito ao enfrentá-la. Elvira Vigna, em “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” (Companhia das Letras), explora suas habituais personagens femininas, fortes e raras, que fogem a padrões ou a não padrões. A desse livro, por uma série de razões, torna-se confidente de um interventor de uma editora que está prestes a fechar e que adora contar suas aventuras com prostitutas. Ela, que poderia ou até deveria repelir o assunto, o aceita, gosta de ouvi-lo. Não só por isso, uma típica mulher de Elvira Vigna.
A partir de um livro infantojuvenil, “Sete Orelhas”, de Silvinha Meirelles (Ôzé Editora), fiz uma viagem a um mundo que em parte acabou. Comprei o livro ao ver, na página da editora, a autora e suas filhas (uma fez as ilustrações, a outra, o projeto gráfico) contarem como a história, repetida à exaustão na família, chegou até elas. A história de um matador que coleciona orelhas de suas vítimas também se conta em minha cidade, no caso, situando-a nos tempos dos “contendores da morte”, que, em Passos, na primeira década do século XX, culminou com a intervenção do governo de Minas, num episódio conhecido como “a matança do fórum”, que serviu de base para um romance de Mário Palmério, “Chapadão do Bugre”. Li “Chapadão” há muito tempo; no confinamento li, do autor, “Vila dos Confins” (José Olympio Editora), livro que não se faz mais no Brasil, em grande parte porque o país mudou, a vida rural, apesar da importância atual do agronegócio, não é mais a dos anos de 1950, mas também porque já não temos a esperança daquele momento entre a ditadura de Vargas e a Militar. Por outro lado, não duvido de que, nesse mundo de milícias e exércitos de contraventores, matadores ainda colecionem orelhas arrancadas de suas vítimas.
3 comentários:
Obrigado, Alexandre, por pousar seus olhos de poeta, no meu texto.
Ronaldo Guimarães
Por essas e outras que minha pilha de livros não lidos aumenta. Quando dou baixa na leitura de livros que, pacientemente esperavam por sua vez, lá vem o Alexandre Brandão me deixando desesperada para comprar outros títulos e me deliciar com a leitura a partir de seus comentários. Haja estante em casa.
Ronaldo, meu amigo, sou fã do seu livro, você sabe. Dag(nunca)mar, nós os viciados em livros somos incorrigíveis. Mas é um bom vício, o melhor deles.
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