Para André Ricardo
Aguiar
Palavras mortas,
algumas indignadas, outras conformadas, não raro se reencarnam na crônica, escrita
de reconhecido poder mediúnico, mas não por isso. O romance, o conto e a poesia
são, menos por vontade própria e mais por cobrança estética, infensos a defuntos
dessa natureza, cabendo à crônica, portanto, ocupar o espaço. Em um romance
moderno não entra a palavra “fuá”. O romancista, dependendo do caso, preferirá os
sinônimos intriga (dificilmente mexerico) ou valentão. Mas um cronista defenderá
como não sendo puro fuá o que se fala acerca da origem ilícita dos seis milhões
usados para comprar aquela façanhosa casa no Distrito Federal. Ou dirá que
esses fuás arrotam muito e mordem pouco.
Em uma crônica de
agosto de 1968, Carlinhos Oliveira escreveu “em pandarecos”; antes de continuar,
cito o texto: “sabendo estar em pandarecos o seu próprio coração, ele
acalentava uma única pergunta. / — Quem morrerá por mim?” (Sobre corações, no
site Crônica Brasileira). Cinquenta e cinco anos atrás, aquela locução era de
uso corriqueiro, mas não causaria estranheza caso não fosse e irrompesse na
crônica. De lá para cá, e sabe-se lá por que motivo, pandarecos, catando
cavacos, deu com os burros n’água e foi dividir o túmulo com circunfuso, adjetivo
que, provavelmente nascido morto, foi exumado com a facilidade com que os numéricos
filhos mimados não contarão para cremar a democracia. Deixemos de papo e vamos
ao que interessa: quem, hoje em dia, empregaria os pandarecos e circunfusos da vida
e da morte? Respondo: outro cronista.
A crônica trava
uma luta particular para ressuscitar as palavras fenecidas por conta de um vírus
estrangeiro — nunca chinês, é bom que se registre. O download em site made in
USA destrói o “baixar”, e ninguém mais baixa coisa alguma de um sítio feito nos
Estados Unidos. Por outro lado, continuamos baixando a cabeça para as
atrocidades ditas por um brasileiro que estudou em Chicago e, no crepúsculo de
seus dias, açoita os camumbembes, com certeza mais pobres do que ele foi, que galgam
os primeiros degraus que os separam de um mundo mais justo. Resumindo: entre a
recusa cabal e o aceite dócil dos estrangeirismos, a crônica ora é um médium raiz,
que distribui pelos quatro cantos a palavra portuguesa já no purgatório e a um
passo do céu ou do inferno, ora finge-se de morta e prefere estar in.
No final de
semana passado — quando os trabalhadores memoraram seu dia e uma gente estranha
gozou da democracia ladrando contra a democracia — entre leituras, faxinas e
outros labores, tentei recuperar o nome de um colunista salvo engano d’O Globo.
Ele escrevia — mais um salvo engano — no Segundo Caderno, na década de 1980. É
possível que escrevesse desde antes, e pode ser que minha reminiscência seja de
fato dos anos 1990. De qualquer modo, o traço do tal colunista era o uso intensivo
de palavras mortas e inumadas. Fora os artigos e alguns pronomes, muitos mergulhados
em ênclises e mesóclises, todo o texto era empachado por palavras que um bebê,
vivesse quanto vivesse, jamais falaria, e um revelho, tendo vivido quanto
viveu, nunca terá falado. Pelintra, fato, janota e cocote, olvidadas desde os
primórdios do século passado, eram defuntos muito frescos, portanto estavam
descartadas do repertório do tal colunista.
Talvez fosse um
filólogo, um dicionarista, um reles diletante, mas, apesar de consultar jornalistas,
no privado e em rede social, não descobri quem era aquele Chico Xavier das palavralmas.
Muitos apostaram no Joaquim Ferreira dos Santos, que costuma usar gírias de décadas
distantes e, em alguns casos, se expressa com antigualhas dos tempos do onça, mas
Joaquim só espicaça uma coisa aqui e outra ali por puro deleite estético, para
dar sabor ao texto. O outro, não. Ele montava um bloco hermético, que, para ser
decifrado, primeiro exigia a consulta do significado de cada palavra — naquela
época, em dicionários pesados e quase sempre velhos —, depois cobrava a compreensão
do conjunto, ou seja, da sequência dada às palavras, algumas ornadas de aspas
ou escritas em itálico e, quando necessário e até exageradamente, separadas por
vírgula, ponto e vírgula, dois-pontos, reticências, travessão, parêntese,
exclamações e interrogações. Não era fácil e, confesso, jamais avancei além de
umas poucas orações, nunca chegando ao fim do primeiro parágrafo.
Seja como for, e, se não é um dislate o que vou dizer — não sei bem o que eu fazia nos anos de 1980 —, o jornalista cujo nome e existência me escapam é o exemplo fiel do poder mediúnico da crônica, sobre a qual palavras de antanho descem tanto para assombrar gregos e leitores quanto para distrair escritores e troianos. É um luxo essa função açambarcada pelo texto miúdo, criado, segundo Antônio Cândido, para falar da vida ao rés do chão. Como cronista, cioso de meu privilégio e menosprezando os que não gozam da mesma sorte, vasculho romancistas, contistas e poetas e rio dos que não violam, por puro medo, a lápide das palavras mortas, seja num comecinho de noite, seja à meia-noite, quando, mal o sol desponta no horizonte, um jovem de oitenta anos lê, de cabeça para baixo, seu jornal sem letras que diz: “é melhor morrer do que falecer, a terra é uma bola quadrada, que gira parada em torno do nada, sem sair do lugar”.
4 comentários:
Como é bom quando o “excelente” e o “delicioso” convivem em harmonia.
Me enchi de alegria.
Alexandre, todos nós temos nossas palavras mortas! Eu, que como você deve saber, sou dedicado às artes da cozinha, tenho uma que está agoniando aos poucos. Grande parte dos cozinheiros que habitam os jornais e internets da nossa vida atual estão teimando em colocar os ingredientes num horroroso "bol", roubado dos que falam a língua dos ingleses ou suas assemelhadas, como a falada nos EUA, desprezando nossa muito mais graciosa TIGELA. É uma morte tão desnecessária e triste que peço socorro aos cronistas que nos ajudem contra mais essa atrocidade linguística!
Vermelho
Pois é, Vermelho, as línguas são vivas e vão influenciando e sendo influenciada por outras, mas há exageros, não é? Este seu exemplo é um deles, aliás, que horror essa incorporação desnecessária.
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