Antes da pandemia, flanando por Botafogo, encontrava assobiadores pelas ruas. Eu pensava: assobia de tristeza — o amor o deixou no dia anterior, às 17h35m —, ou, quem sabe, de alegria — ganhou na Raspadinha cinco contos, o valor de um café. De repente, não é nem uma coisa nem outra, é um assobio distraído, um dessilêncio contra o barulho da rua. Desconfio que seja por um motivo especial, maior.
Agora há, ou deveria haver, a imposição da máscara, e
assobiar não é mais tão simples, nem mesmo falar de máscara é tão simples. O
som, quando sai, sai abafado. Imagino então que os assobiadores tenham sumido. Mas,
se eles não apenas gorjeiam suas alegrias ou tristezas, se não apenas devolvem
barulho ao barulho, mas também vão além, como estão fazendo?
Numa das minhas poucas saídas neste quase um ano e meio de reclusão, passeando com minha filha e seus filhos, um casal de cachorros, reparei que as pessoas, diante de rostos somente em parte descobertos, passaram a olhar sem cerimônia o corpo umas das outras. Olhar no olho é íntimo, ninguém o faz com desconhecidos. (Quer dizer, existe o flerte. A bem da verdade, existiu, hoje não mais se encara a paquera com malícia e súplica, dá-se match no Tinder, e, se o outro não é cringe, pa-pum, “vem cá, meu crush”.) Mas o corpo, vestido com roupa que o desenha ou disfarça, por estar arriado ou teso, bronzeado ou pálido, enfim, por ser presente, transparente e óbvio, não se compara a um assobio, que é só possibilidade, pura insinuação.
Sendo assim, quando voltar às ruas, se ainda estivermos sob o império da máscara, fitarei os olhos de quem der pista de carregar em silêncio seus assobios, pois não posso perdê-los de vista. Sabe por quê?
Indiferentes ao tumulto, aqueles assobios, como já disse, não são um transbordamento de alegria ou tristeza, nem uma guerra particular contra o ruído do trânsito e o alarido do comércio. Os assobiadores de rua são depositários, desde o instante em que perdemos a capacidade de dialogar com os animais, do que se tornou o maior segredo da existência. Por terem capacidade de conversar com os passarinhos urbanos, eles relembram o segredo, não o deixam cair no esquecimento, ainda que no esquecimento somente deles, os escolhidos.
7 comentários:
Que coisa linda! Você tem olhos de assobiador, enxerga os detalhes mais incríveis nas ruas. Vou começar a assobiar dentro de casa, treinar, experimentar esse estado assobiador ... E adorei a foto da pequena estátua: tivemos uma bem assim na casa dos meus pais, uma que foi-se pelos caminhos, com o tempo, com os pais, que lembrança boa. Não comento muito, quase nunca, desculpe Alexandre, mas adoro ler suas crônicas. Beijos
Belo texto, manovéio! Mas só podia mesmo vir de você, Botafoguense incorrigível, de pernas tortas, como Garrincha ou João Antônio. Mas, saquei o lance: conheci e fotografei o "Manneken Pis" em Bruxelas, em 1982, quando por ali presenciei na famosa fonte (in loco) a primeira neve da minha vida. Assovia não... Vira Galo, rapaz! Toma tenência! Rsssss!
Bacana, Alexandre, belo texto. Bjsssss
Acho que assoviar saiu de moda, Ale. E faz tempo. Só poucos, os escolhidos como você diz, ainda sabem exercitar essa arte. Meu pai era um assoviador, não dos melhores, era um assoviador sem pretensões. Mas tinha um amigo que assoviava até
Chopin e Beethoven, sua boca era um instrumento musical. Por acaso um desses assoviadores remanescentes veio por esses dias consertar a máquina de lavar aqui de casa. Mexia na máquina e assoviava. Me deu uma saudade!
Chiii.... ando passarim de asa quebrada, Xande! Só canto miudim. Mas quem sabe o tempo se abre de repente e desando a assoviar?
bjos, Branca.
Edna, Pausado Tempo, Barreto, Miriam e Branca, queridos amigos, um assobio pra vocês.
Às vezes abro as janelas e dialogo com os pássaros, quando estão dispostos ao diálogo. Com as corujas eu troco silêncios. Com elas aprendi a arte da telepatia.
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