O fato é que nem ele nem ela dançam muito bem a valsa. Por sorte, a valsa anda sumida dos salões, e eles disfarçam a inaptidão sacolejando-se em outros ritmos, sem chegar, verdade seja dita, ao funk. Ela por achar que lhe faltam os atributos buzanfânicos, ele por uma certa recusa ao novo. Mas, entre a valsa e o funk, dançam tudo aquilo que é sincopado e que, em certos momentos, os faz até colar o rosto um no outro. De rostinhos colados, o mundo é aquele trem lá fora, complexo, violento, nada musical. O mundo é o que se esquece.
Em pleno século XXI, dois meninos resolvem brincar de cowboy. Ninguém entende muito bem, nem
mesmo o pai, nascido no último vicênio do século XX, nunca havia brincado
daquele modo. Nos tempos do coroa, as aventuras eram extraplanetárias ou
vividas por uma coisa entre bicho e avatar, desenho japonês. Como aqueles dois,
soltos no quintal, sem celular ou algum controle remoto na mão, brincam daquele
jeito? Onde arranjaram os revólveres? E as espoletas?
Um dos meninos cai ao chão. O outro pula, grita, parece
feliz. Sopra o cano do revólver, dá meia-volta e sai correndo. O morto se
levanta, ri da morte e sai atrás do outro. O bandido virou mocinho e
vice-versa. Eles estão brincando é disso, de perpetuar a vida.
Na hora da parolagem, levantam uma possível traição da
Melina, mulher de Expedito. Alguém lembra que a recíproca também é verdadeira,
Expedito não é flor que se cheire. Enquanto o tititi fofocante aumenta e
diminui, Melina e Expedito fazem do colchão palco do amor mais sublime e
sincero.
A velha senhora não é muito chegada a olhar a vida e ter
saudade, nostalgia. Vive o dia das seis da manhã, quando se levanta, às dez da
noite, quando se deita. Viver está ligado a fazer uma leitura, uma visita, um
passeio, um crochê ou mesmo a preparar um prato para receber amigos ou alguém
da família. O fato é que, como sempre fez, toca a vida pra frente, não
empurrando com a barriga, mas dando um passo atrás do outro, pra frente, sempre
pra frente, isso é o que importa. Mas, entre as dez da noite e as seis da
manhã, entre deitar-se, dormir, acordar e levantar-se, a velha senhora pensa e
sonha. Uma dessas coisas, que é pensamento e, em seguida, sonho, lhe coloca o
mundo nas mãos, e ela, sem grande esforço, joga sobre ele três pitadas de delicadeza,
o suficiente para o mundo seguir em frente, sempre em frente. A delicadeza faria
do mundo um bom lugar para viver, ler um livro, fazer um crochê, um passeio, uma
visita, preparar um prato para receber amigos ou familiares sem que fosse
preciso modificá-lo.
As meninas jogaram suas bonecas no quarto dos meninos. Eles se
surpreenderam com aquilo, mas, uma vez recuperados do susto, ninaram as bonecas
com todo o amor que guardavam.
O trânsito estava horrível. Fazia mais de hora que nenhum carro saía do lugar. Os mais ansiosos haviam recorrido à buzina, mas caíram em si e perceberam que isso não fazia o trânsito avançar. A moça do carro popular desligou o motor. O senhor cujo carro estava emparelhado ao dela fez o mesmo. Os dois logo atrás foram na onda. De repente, a rua era um monte de carros parados e silenciosos. Uma mulher de turbante vermelho e vestido rosa desceu do ônibus, abriu os braços e começou a cantar “Aquarela do Brasil”. Todo mundo saiu de seus carros e acompanhou a afinada passageira do Gávea-Tijuca. Sorrisos, abraços e danças arrancaram do transtorno uma dose de felicidade.
Como todo assaltante, aquele chegou sorrateiro atrás da vítima, que assistia na tela do celular às mais recentes informações sobre a guerra. As imagens o fizeram se lembrar das histórias da fuga de seu avô da Europa durante a grande guerra e seu pensamento saiu em espanto pela boca: outra guerra? Sim, respondeu o desavisado a um passo de perder o celular, outra entre inúmeras espalhadas, naquele instante, mundo afora. O assaltante, com as mãos sobre o rosto, gaguejante, mas dono da voz, lamentou a índole má e corruptível do ser humano.
4 comentários:
Muito bom!
👀
Valeu, Leal. Abraços.
A Letícia, minha ex-aluna, hoje colega, costuma dizer "Só Jesus!" Peço licença a ela para o plágio, digo "Só você, Brandão!" Grata.
Só nós, Nilma.
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